
O piano é um instrumento de corda. Tecnicamente possui o que é chamado de corda percussiva, característica rítmica que o aproxima do kit de bateria, esse sim, naturalmente responsável pelo pulso e pelo tempo. O baixo elétrico está no meio do caminho. Um instrumento harmônico, também tocado de forma melódica, que em razão de seu timbre grave está sempre dialogando com os grooves da bateria. Essa formação influenciada diretamente pelo jazz americano, e que nasceu nas cozinhas das big bands durante a swing era — piano, bateria, baixo — foi extremamente comum no Brasil na metade do século passado, com trios antológicos como Sambalanço Trio, Zimbo Trio, Som Três, Sambrasa Trio, entre outros. Em todas as experiências fica claro o potencial percussivo que os três instrumentos são capazes de criar, para além de suas obrigações harmônicas. Trata-se de um acompanhamento transcendente. Esse é o ambiente musical criado pelo Terra Trio no disco Recital na Boite Barroco de 1968, o primeiríssimo disco ao vivo de Maria Bethânia.
Acompanhados por Otto Gonçalves Filho, violonista e compositor gravado inclusive por Baden Powell, os 4 instrumentistas abandonam a forma meramente musical para criar um novo ambiente de acompanhamento, uma efetiva paisagem sonora que está a serviço da vontade e do talento de Bethânia. ‘O que tinha de Ser’ de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, por exemplo, é tocada sem um tempo definido. As cordas ficam vibrando, o piano é tocado como uma harpa e a bateria entra só no final, sustentando os ataques nos pratos, levando a canção para o clímax “Porque foste em minh’alma/como um amanhecer/porque foste o que tinha de ser”.
Os músicos estabelecem várias estruturas de tempo, que remetem a uma dramática marcha polirrítmica no início de ‘Marginália II’, para então Bethânia abrir o disco enunciando que somos o terceiro mundo no poema de Torquato Neto musicado por Gilberto Gil. Iniciando dessa forma o álbum com o gosto dos tropicalistas, Bethânia revela ao fim da primeira música:
“ — Muito obrigada. Nesse show estou cantando as músicas que eu gosto e da maneira que eu gosto. Pixinguinha, Antônio Carlos Jobim, Vinícius de Moraes.”, com o violão de Otto já iniciando a fatalista introdução de ‘Carinhoso’. Segue um pout-pourri com “Se todos fossem iguais a você” emendado no “E como é sincero meu amor/Eu sei que tu não fugirias mais de mim/Vem, Vem, Vem/Vai tua vida/teu caminho é de paz e amor”.
Nas duas primeiras músicas, e a fala de Bethânia contribui para essa elucidação, revela-se a vocação personalista do álbum, de descobrir (no sentido de algo que estava realmente coberto) a intimidade da cantora com as canções, a sensibilidade da intérprete na entrega das letras, uma vez que o registro ao vivo contribui para legitimar a experiência do ‘eu’, como que sintonizando a relação de Bethânia com sua própria musicalidade.
Com seus músicos e as canções que provavelmente não lhe saíam da cabeça, Bethânia recria essas melodias definitivas e comanda todos os aspectos durante esse recital. Os acompanhamentos sem tempo definido criam um ambiente musical que fica suspenso o tempo todo, e são facilmente justificados ao serem regidos pelas escolhas de métrica e pela respiração da artista, ao mesmo tempo que leva a MPB para um flerte descarado com o erudito.
Bethânia canta os tropicalistas, com várias faixas do antológico disco Gilberto Gil de 1968, lançado meses antes desse recital. Com faixas como ‘Pé da roseira’ e ‘Ele falava nisso todo dia’ presentes, se revela somente uma parte do repertório, pois como a cantora informou, irá cantar as músicas de que gosta. Como um buraco negro, o show avança como um evento irresistível que nos engole pela curiosidade e vitalidade, e faz brotar do outro lado serestas e um ou outro samba-canção. Desde ‘Último desejo’ de Noel Rosa, passando por ‘Lama’ de Aylce Chaves e Paulo Marques, até a rendição final em ‘Molambo’ de Augusto Mesquita e do fabuloso violonista Meira, os momentos dor de cotovelo do show soam diferentes. As canções não são modernizadas como quando Elizeth Cardoso é acompanhada pelo Zimbo Trio, nem soam como Elis Regina cantando ‘Folhas secas’ de Nelson Cavaquinho, junto das teclas malandras de César Camargo Mariano. Nesse registro ao vivo de Bethânia, até os sons contemporâneos de seus conterrâneos como Gil, Caetano, Gal, soam diferentes.
É o típico fenômeno que ocorre quando se submete uma lista de músicas ao gênio de uma artista deste calibre. O set list já é naturalmente transformado quando os instrumentistas, cada um com sua influência e estilo, executam as obras. O próprio conjunto de canções, uma vez reunidas num álbum ou show, trata de moldar as expectativas do ouvinte alterando sua percepção sobre esse mesmo conjunto de músicas. Na contra-capa do disco (ou no Spotify), quando se lê as canções, pode-se imaginar conhecê-las, mas não dessa forma. Quando tudo está a serviço da visão sensível de uma cantora e intérprete como Bethânia ocorre uma metamorfose no repertório. Aquela lista de músicas, o virtual repertório, é enjeitado por outro repertório que nasce ali, frente ao nossos ouvidos, instigado pela dinâmica de Noel Rosa e Gilberto Gil ocupando o mesmo espaço, da estética orgânica dos músicos, e da docilidade de todos perante o gênio musical de Bethânia.
Fica ainda mais evidente a pessoalidade do álbum quando percebemos que mesmo durante a ditadura militar, no auge da música de protesto, a cantora opta por incluir serestas e compositores tradicionais como Pixinguinha. Há pequenas alterações nas melodias, trocas no artigo ‘o’ para ‘a’, e o controle que Bethânia exerce sobre a dinâmica e o andamento das composições reforça também o sentido das letras. E se pela excelência técnica já é considerada uma grande cantora, Bethânia aqui justifica a alcunha de intérprete. Ela traz inovações na métrica de ‘Camisa listrada’ e se delicia com outro pout-pourri : ‘Pano Legal/Café Soçaite’, no clima das crônicas do samba de breque de Billy Blanco, compositor da clássica ‘Piston de Gafieira’ (Bethânia regravou esse mesmíssimo pout-pourri 50 anos depois no recente De Santo Amaro a Xerém com Zeca Pagodinho).
Antes de encerrar com ‘Maria, Maria’ (a expectativa é que fosse a de Milton Nascimento, mas se trata de outra composição de Caetano, provavelmente só encontrada nesse álbum) Bethânia diz: “ — Vou cantar uma música que Caetano Veloso fez pra mim. O nome é Baby.” Esta é sem dúvida a maior rendição e a síntese perfeita do disco. Íntimo, com a atenção permanente dos músicos, a energia na entrega dos versos, os tambores e cordas numa simbiose que gera a paisagem sonora ideal para desvelar o tipo de sonoridade concebida por Bethânia. As versões dos clássicos aqui podem não ser as definitivas, mas são, definitivamente, originais. A capa antológica traz uma ilustração da cantora com o peito nu e seu cabelo em tons de azul se misturando com flores, corais e insetos, uma sinestesia que cerca seu olhar sério. É Maria Bethânia Viana Teles Veloso que nos olha, pronta para entregar um vislumbre único da sua visão tão original da música brasileira.