Não é segredo para ninguém que Maria Bethânia idolatra a obra do irmão Caetano Veloso, todavia, nos últimos tempos, ela tem se dedicado a elogiar especialmente o último álbum lançado por ele “Meu Coco” de 2021. Não vimos uma comoção parecida com o lançamento dos excelentes álbuns da trilogia Cê, por quê então esse álbum teria chamado tanto a atenção da abelha rainha?

A tarefa de descobrir as motivações por trás dos elogios de Bethânia é ao mesmo tempo simples e impossível. Sabe-se que ela é mencionada muitas vezes no álbum, direta e indiretamente. Mas há algo mais do que isso.“É um trabalho fora do comum, muito à frente, quase inalcançável. Difícil pensar outro compositor brasileiro capaz de propor algo tão inovador. É um disco muito significativo para mim.” Declarou em entrevista ao jornal Estado de Minas na época em que o irmão completou 80 anos. Inalcançável e Inovador. Logo na primeira faixa, que dá nome ao disco, descobrimos o que Caetano queria: redescobrir o próprio país.
Em “meu coco” (canção) ele cita a frase símbolo de um Brasil que carecia e ainda carece de referências “com Naras, Bethânias e Elis, faremos mundo feliz”. Ora, é como se dissesse, um país com cantoras dessa magnitude tem tudo para ser uma potência, não hegemônica e sim potência solidário (como diria Gilberto Gil).
Em “Anjos Tronchos” vemos a preocupação que afligia o país, a iminência do caos de “palhaços líderes” que “brotaram macabros”, essas palavras, cantadas depois de uma pandemia onde centenas de milhares de pessoas morreram após o negacionismo de estado, mostra que o “otimismo” da primeira faixa, dá lugar a um realismo com doses de pessimismo. A resposta vem em seguida, “Não vou deixar“, onde Caetano referencia Chico Buarque em “Apesar de você” e mostra que a força da canção não deixará a luta acabar. E não deixou. Sabemos que Bethânia nunca foi de comentar os assuntos políticos do país de forma direta, ao contrário do irmão. Ela o faz com o seu trabalho, seja cantando “Um índio“, recitando uma poesia ou gritando “a gente não quer só dinheiro, a gente quer inteiro e não pela metade“, a política em Bethânia é a resistência da voz do Brasil.

A música “Enzo Gabriel” é mais sútil na crítica, singela, onde Caetano exibe um amor sem delírios pelo país, quando canta “Mas já verás o que é nasceres no Brasil“.
Mas nem só de assuntos sérios vive “Meu Coco”, ou melhor, há assuntos ainda mais sérios, como o amor por exemplo. “Ciclâmen do Líbano”, “Cobre” e “Pardo” trazem os amores em meio às múltiplas cores, flores, etnias, questões raciais e outras coisas que nem os deuses podem desmanchar.
Um aspecto particular do disco é a família, coisa imprescindível para Bethânia. “Autoacalanto” é uma homenagem para o neto de Caetano, Benjamin filho de Tom e Jasmine. “GilGal” é sobre a família que se escolhe, os amigos da música e da vida, ouvir essa faixa, com a forte presença percussiva da Bahia, é como ouvir parte da história da MPB.
Em “Você-você” se revela o velho “Caetano lusitano” que sempre mantém relações amistosas com Portugal, país onde é muito bem quisto. O dueto com Carminho, mistura Bahia e Lisboa, Carmem Miranda e Amália Rodrigues, além de tentar fazer uma união de dois mundos distintos, a ex-colônia e a ex-metrópole, começando pelo “você” e o “tu”.
Já em “Sem samba não dá“, Caetano se mostra otimista com a nova geração de artistas do Brasil, citando diversos cantores e cantoras do chamado mainstream, claro, dizendo sempre, que sem samba não dá.
Por último temos possivelmente o ponto alto do disco, “Noite de Cristal“. Se todas as características anteriores já ligavam o trabalho com Bethânia, é aqui que a coisa fica ainda mais profunda. Foi por causa dela que essa música foi trabalhada. Caetano declarou que nem se lembrava da música e que a irmã pediu para ele gravar, ouvindo-a novamente achou linda. A gravação original foi feita por Bethânia, com participação de Carlinhos Brown em 1988 no álbum “Maria”. Nesse mesmo disco, na última canção “Bandeira Branca” Carlinhos Brown faz um som percursivo dizendo “a banda do Olodum“, que Caetano repete em “Noite de Cristal”. No vídeo clipe, Caetano aparece desenhando a irmã, como se dedicasse a faixa para ela.
Em entrevista ao Fantástico, após a confirmação da turnê conjunta com o irmão, Bethânia declarou que esse álbum os aproximou ainda mais. Em suma, devemos a “Meu Coco” além do retrato de um novo país, uma turnê histórica para a música popular brasileira. Bethânia ouviu e adorou.
