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OPINIÃO: Turnê Fevereiros, por Matheus Lima.

Já passavam das nove horas da noite. Eu agarrado no braço do meu namorado, ansioso desde a hora em que chegamos na fila. Durante a espera, conversas mil surgiram – outros tantos, com o mesmo sentimento, uma mistura de alegria e temor, uma reverência quase que sagrada pelo que viria a acontecer. Para passar o tempo, causos e fofocas circulavam – “no Rio essa música quase não entrou”, “você viu que agora ela tem um pedestal”; “que roupa será que ela vai usar?”. Me chamou a atenção esse cuidado ao menor detalhe, da ordem da setlist à composição visual – seus fãs, assim como ela, aprenderam a cultivar com paciência e zelo o apreço a cada parte da experiência do palco, em sua magia, poesia e transcendência.

As luzes se apagaram, os músicos ocuparam seus lugares. Gritos de alegria, ovação completa – a casa de shows vibrava com a expectativa de sua entrada. Eu, ali pela primeira vez tendo a possibilidade de vê-la ao vivo, ainda pensava se tudo era real. Quando o primeiro acorde soou, e a humana intérprete assumiu o palco, gigante em sua interpretação, em sua força, em sua capacidade de transmutar sentimentos em arte pela alquimia de sua voz, entendi que de fato toda a paixão e insanidade do público que a esperava partia dessa vivência fora do tempo e do espaço (ainda que neles profundamente enraizados): Maria Bethânia adentra o palco. E com ela, vamos todos nós, vidrados no espetáculo de vida e brasilidade que se apresenta.

Fevereiros intitula o documentário que se debruça sobre a relação de Bethânia com Santo Amaro e com a Mangueira – suas duas casas. O enredo que consagra a verde e rosa campeã tem como fonte a menina que faz questão de demarcar sua origem interiorana, sua espiritualidade calcada na escadaria da igreja matriz que subia com Dona Canô, e no terreiro de Mãe Menininha – ambos ventres que lhe geraram, de um jeito ou outro. A turnê que empresta o nome desse registro foi a primeira oportunidade que tive de ver um show seu. Desde o primeiro, em 2022, até o derradeiro, em 2024, pensei que não poderia haver introdução melhor – ainda que outros tantos roteiros de seus espetáculos me tenham emocionado ao ver nas plataformas, Fevereiros traz um olhar poético para uma carreira que se aproxima das seis décadas com o mesmo frescor e vitalidade da sua estreia. Pelo repertório, passeiam – com modificações entre um show e outro – mensagens que contam sobre sua espiritualidade, sua paixão pelo Brasil, sua denúncia das injustiças, sua profunda relação com a poesia e seu amor por Amar – verbo este vivido intensamente com amigos, paixões e com a natureza.

Este é também um show atravessado pela consciência da preciosidade de estarmos no mesmo tempo e lugar que Bethânia – e toda sua geração. O repertório traz também janelas para momentos de uma vida que traz a cada show toda sua história – a homenagem à Erasmo, à Rita, e em especial à Gal, são lumiares de memória em um país que teima em esquecer suas riquezas e potencialidades, ou que as valoriza apenas tardiamente. Fevereiros é um convite a lembrarmos o poder do presente, do hoje, da festa – aliada à devoção e ao amor, ela permanece sendo a característica fundante de um povo que, mesmo nas inúmeras dificuldades, sabe o poder revolucionário da alegria e da comunidade. Quando as luzes se acendem novamente, e o palco está vazio, o coração permanece acelerado – cai sobre todos nós, que presenciamos este espetáculo, a responsabilidade de viver intensamente a entrega que ela propõe, ao mesmo tempo em que, na volta ao cotidiano, levamos conosco a chama dessa ardorosa defesa de um Brasil possível – humano, multicultural, artístico, vivo.

Matheus Lima.

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