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“Nessa turnê de 60 anos tudo parece concorrer para tal definição, uma vez que o olhar de Bethânia traduz e nos convoca a nos olharmos enquanto povo… ” — Pedro Dorneles

Foto: Victor Ortega

A cidade do Rio de Janeiro mais uma vez sediou a estreia de uma nova turnê de Maria Bethânia. Este ano, 2025, uma ocasião especialíssima: comemoração dos sessenta anos de carreira de uma das mais importantes artistas do Brasil . 

A filha de Dona Canô nos surpreende com um espetáculo-palimpsesto poético, tecido por memórias, afetos, enaltecimento do sagrado, criticidade política, sutilezas abismáticas do amor e outras frentes temáticas. 

Os trabalhos iniciam-se com tambores ressoando para Yansã e o coro entoando um canto de saudação. Abre-se, em duas partes, o coração do palco, e entra em cena Maria Bethânia cantando uma canção de seu primeiro compositor, seu amigo e irmão, Caetano Veloso: “Sete mil vezes”. Escolha significativa que expressa sua vitalidade serena e ao mesmo tempo arrebatadora na cena da cultura brasileira. 

E por falar em escolha de repertório, nesse show, a abelha-rainha nos surpreendeu ao eleger poucos hits (não teve “Negue”, “Fera ferida”, “Explode coração”, “O que é o que é?”, “Dona do Dom” nem “Dona do Raio e do vento”). Por outro caminho, destinou uma atenção maior a canções que são menos frequentes em suas apresentações.

“Gás Neon” , “Demoníaca” , “Gota de sangue” e o “Lado da Balada Sem Luz”, por exemplo, trazem o tom Barroco e expressivo que sublinha a formação de Bethânia como intérprete, pois são canções de letras intensas, de sentimentos ora ocultos, ora rasgados, mas que não são cantadas pela artista há mais de 40 anos em seus shows. 

Essa revisitação acaba por instaurar o inédito a partir do inesperado, confirmando que o movimento feito por Bethânia revela a grandeza de uma artista capaz de sempre nos embevecer.

Duas canções inéditas: “Palavras de Rita Lee” com seu tom autorreflexivo, forjado no fundamento dos paradoxos mais lógicos que traduzem o ser, um presente da amiga e colega de ofício, um modo bonito de luzir perene.

“Vera Cruz”, samba de Xande de Pilares e Paulo César Feital, uma verdadeira e explícita declaração da resistência das vozes há muito subalternizadas nos corredores da história de nosso país, mas que insurgem no espaço da arte para se afirmar enquanto formadoras desse nosso chão-Brasil. Clementina, Jesus, Tupã, Pelintra, Pátria dos Exus, ventre de Tupinambá: “Uma força que nunca seca”.

Nas palavras de Heloísa Murgel Starling no prefácio do Caderno de Poesias, em 2015, “(…) o olhar de Bethânia pensa; e o Brasil que ela vê se aprende pelo olhar: olhar com esperança, com temor, com espanto, voltar para baixo os olhos, dirigir-se ao tempo e olhar para frente, para trás, para os lados. E seu olhar se interessa por tudo – tudo o impressiona e o faz refletir.” (2015, p.21).

Nessa turnê de 60 anos tudo parece concorrer para tal definição, uma vez que o olhar de Bethânia traduz e nos convoca a nos olharmos enquanto povo, potência, pedrinha miúda de Aruanda e grandeza de florestas e marés. Bethânia reúne sertão/veredas/poeira com mar/praias/luar. Seu olhar e seu canto, de tão luminosos, geram sóis que doem em dós. Sereia que canta, destemida Yara.

Menina dos olhos de Oyá, um trovão, um santo forte, Rosa dos Ventos seu norte. Filha de Tupinambá que vigia, que com a folha certa, rezando como aprendeu, vai livrar a terra inteira de tudo que é ruim. 

Mulher, lado mais quente do ser, Maria Bethânia celebra conosco sua longeva estrada artística e ficamos rindo à toa, mas sabendo sim o porquê: alegria de podermos partilhar do mesmo tempo de uma Rainha.

Pedro Dorneles da Silva Filho.
Doutor e Mestre em Estudos de Literatura pela UFF;
Pós-graduado em Literatura, memória cultural e sociedade pelo IFF;
Professor de Língua Portuguesa (SEMEDE-Rio das Ostras/ SEEDUC-RJ)