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“Mel” – por Evandro Andrade.

Às vezes, eu me perguntava: de onde Bethânia tirou tal iluminação e essência para falar de amor em Mel?

Acredito que seja através do olhar profundo da cantora que surge, de certo modo, a influência de Oxum para o nascimento deste primoroso álbum. Assim como Afrodite na mitologia grega, Oxum, nas terras iorubás, é a deusa do amor e da fertilidade, a própria abelha que produz o doce sabor do mel. 

Basta perceber os arquétipos que envolvem a atmosfera do álbum. O amor é o fundamento e o sentimento que transborda nas águas de Oxum. Para além disso, o amor é um dos primeiros sentimentos primitivos da existência humana, e nele se busca a infinita contemplação.

Apesar de trazer tais adjetivos para caracterizar o fenômeno do amor, não posso deixar de citar suas várias faces e facetas que circundam sua órbita. O amor pode ser um estado de Nirvana, mas também um estado de autodestruição, possessão e obsessão pelo outro. O amor pode ser a ilusão e o luto pelo ser não correspondido. Suas nuances percorrem entre a luz e a escuridão. Assim como Oxum, que é doce como açúcar, mas também é uma feiticeira temível. É neste espectro analítico que me debruço na construção de um dos melhores álbuns da música popular brasileira.

Produzido no segundo semestre de 1979 por Perinho Albuquerque e Maria Bethânia pela gravadora Philips, o disco Mel se dirige aos apaixonados de plantão que buscam a iluminação do amor, da paixão, da libertação e da aceitação de amar e ser amado. Mel é um álbum que traz a ascensão do amor sublime e a ruína de uma paixão avassaladora. Os arranjos de Lincoln Olivetti nos levam para uma dimensão de sensibilidade e transformação.

O prenúncio da chegada de Oxum é traduzido na primeira faixa, que dá nome ao título do álbum, escrita especialmente para cantora pelo irmão. E, por falar em título, foi neste clássico da MPB que Bethânia recebeu a coroa de “abelha rainha”. A primeira faixa nos dá a sensação de elevação e sublimação da alma e do espírito livre. A glória de ser instrumento de prazer em diferentes horas do dia traz a completude do ser e do existir.

A faixa “Ela e Eu” escrita por Caetano Veloso nos concede a intimidade e um olhar apurado sobre a relação a dois e os cataclismos da vida que moldam e solidificam o sentimento mútuo.

Já a faixa “Cheiro de Amor” revela uma paixão tórrida de completa submissão aos prazeres da vida. O destino presenteia Bethânia com um jingle de motel que ela, junto com Ribeiro, Paulo Sérgio Valle, Jota e Duda Mendonça, transforma rapidamente em um hino dos amantes e apaixonados da década de 70. Considero esta a faixa ápice do disco.

A Cor Brasileira”, composta por Joyce Moreno e Ana Terra, é de uma genialidade sem igual. Um jogo de palavras que conta a história de um amor indeciso, de uso e desuso. É aquela relação entre duas pessoas que não se largam, mas também não assumem um compromisso sério. Não há prisões ou posses, apenas algo indefinido que fica no ar, mas que se mantém.

Loucura”, de Lupicínio Rodrigues, é quase uma súplica para que o amor perdido retorne. Um lapso de obsessão e dependência emocional pelo outro, pedindo a misericórdia da reconciliação. Os arranjos e a melodia trazem uma melancolia, quase com um ar de desespero pela perda da pessoa amada. Um clássico!

Chegamos, então, a um momento de finitude. Esse é o sentimento que “Gota de Sangue”, de Angela Ro Ro, transmite a dor e o luto pelo fim de um relacionamento que não termina por falta de amor. Muito pelo contrário, é uma daquelas relações em que ambos se amam, mas são muito diferentes, e, pela convivência, esse amor se esgota com o tempo. O tom minimalista dá um ar de perda e tristeza por deixar ir alguém que se ama.

Grito de Alerta”, escrita por Gonzaguinha, é quase um grito de libertação. Essa música nos atinge em cheio com o desespero de viver uma relação tóxica e opressora, em que ambas as partes se machucam e se desprezam, e se perguntam: até quando? É um estado de autodestruição e de personalização do ego no outro. Uma canção forte e, a meu ver, o segundo ponto mais alto do disco.

A faixa “Lábios de Mel”, de Waldir Rocha, traz na composição o sentimento de paixão. Lembra o êxtase de vivenciar o primeiro amor? O frio na barriga, a ansiedade de ver o outro, o beijo com gosto de mel, a sensação de completo desejo. Um amor humilde, sem pretensões ou amarras, um simples gesto de cumplicidade entre duas pessoas. É nisso que a música se debruça e se deleita: no amor profundo e verdadeiro.

Amando Sobre os Jornais”, composta por Chico Buarque, constrói uma relação tórrida de amor e desejo, mostrando como as delícias da vida se entregam de forma única entre duas pessoas.

“Nenhum Verão” é uma daquelas músicas que fazem você sentir de fato a ausência do grande amor da sua vida. Não há brilho, não há sol que irradie uma vida sem sentido. Composta por Túlio Mourão, é aquela faixa em que você imagina tal situação de dor, na angústia de tentar viver e seguir em frente. Melodia e arranjo, em um toque minimalista, dão o ar de uma manhã nublada.

Retomamos o fogo da paixão com a faixa “Infinito Desejo”, de Gonzaguinha. Em um ritmo melódico de samba, a música nos concede o delírio e o desejo de ser consumido pelo outro, pela ardência e ânsia de prazer.

Na última faixa, intitulada “A Queda d’Água”, escrita por Caetano Veloso, temos um poema na contracapa do disco. Oxum retoma seu posto místico de poder sobrenatural sobre o fenômeno da existência entre os dois irmãos. O surgimento da cachoeira dá o sentido de visão e desvelamento da verdade sobre o mundo. Há um momento de revelação e entendimento do ser e do sagrado.

Por fim, Mel é definitivamente um álbum atemporal, que retrata o amor sob diferentes formas e compreensões. É um disco potente que ultrapassa fronteiras no espaço-tempo, que nos faz lembrar que o amor ainda existe e que podemos buscá-lo em algum lugar. É um álbum dedicado até mesmo para quem dedica.

O amor aqui prevalece em forma de música.

Evandro Andrade | Especializado em História, Cultura Africana e Afro-brasileira e Educação das Relações Étnico-racial pela Universidade Federal de Goiás. Mestre pela Universidade Federal de Goiás, onde desenvolve pesquisas sobre Geografia Cultural.