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“A BEIRA E O MAR”: Audição Comentada por Sarah Mirella — Texto de João Victor Cunha.

A audição comentada do álbum “A Beira e o Mar” feita por Sarah Mirella (Mestrado em Literatura e Cultura pela UFBA) ressaltou temas que perpassam a obra e estruturam sua narrativa. O álbum, que é fruto do show “A hora da estrela”, foi lançado em fins de 1984, após a conclusão da temporada do show homônimo. Foi feito um recorte de músicas em cima do setlist visando criar uma estrutura que dialogasse diretamente com a proposta do show, uma leitura encenada ampliada da novela de Clarice Lispector.

Reprodução / Instagram

Sarah comenta que desde os primeiros versos escritos por Caetano Veloso para “A hora da estrela de cinema” há a exploração da condição marginal da protagonista Macabéa (personificada por Bethânia no show), física e—ou existencial. Ela é caracterizada por sua “condição mofina, jururu, panema” e afirma que quase não existe, e sabe. Apesar disso, há a valorização da figura feminina que “é sempre bela” e “Tem sua hora/da estrela de cinema”. Ao longo do lado A do disco temos uma exploração mais longa de Macabéa como figura, diferenciada, destacada, e principalmente, independente. Na música título do álbum Sarah comenta a insubordinação explorada por Roberto Mendes e Jorge Portugal, com Macabéa afirmando que faz o mundo girar e os versos categóricos “Mas estarei sempre inteira/Se você despedaçar/Você sempre sempre a beira/E eu toda água do mar”. Aqui a metáfora do título se elabora, os dois lados que não se misturam, a característica única e não ‘misturável’ da protagonista, e da própria intérprete.

Reprodução / Instagram

Além disso, os versos “tudo que quer que seja/Não sou” também parecem ecoar as convicções da aguerrida abelha rainha. O amor que segundo essa canção precisa ser dado aparece culminando em desilusão na brilhante música seguinte, “Na primeira manhã”, de Alceu Valença, que relata os dias após término de um enlace amoroso. E termina com a taxativa Bethânia proferindo “solidão!”. A visceralidade do canto da intérprete nessa canção invade a alma. “ABC do Sertão” se configura por ritmos tipicamente nordestinos e encena uma valorização da diversidade linguística dos sotaques da região por meio da exploração de suas pronúncias locais. É uma música dançante e divertida.

O lado A termina com a sentimental “Pra eu parar de me doer” da tarimbada dupla Fernando Brant e Milton Nascimento, que a fizeram especialmente para Bethânia. Sarah Mirella articula esses versos com um trecho de Clarice no qual a própria Macabéa vocaliza para a amiga sua dor interna, existencial. Como se tudo lhe doesse. O leãozinho-mano Caetano volta à cena na composição da bela abertura do lado B do disco “O nome da cidade”, música-travessia. Macabéa, a nordestina deslocada, fina e pálida chega a cidade maravilhosa e tem a experiência dual do estrangeiro: fascinação e estranhamento. O redentor “Que horror/Que lindo” no qual “cada coisa é demais e tantas” que é “ameaça e promessa” parece turvar a visão da singela moça interiorana. Lembra uma experiência de um outro alguém vivida em fevereiro de 1965… Já no Rio, a experiência cinestésica e caótica da existência na cidade grande é explorada na canção “Caso de Polícia”, composição de Moraes Moreira. Aqui o amor tem cheiro, perfume, a personagem referida é atrevida e as “cenas de ciúme” levam ao escândalo que fere o amor. Macabeá-Bethânia parece experienciar nossas sensações e é difícil não rememorar o eu lírico de clássicos prévios da abelha rainha como “Negue” e “Ronda”. A Bethânia do amor urbano e desbragado faz-se presente.

Se “ABC do sertão” rememorava o nordeste do país e o homenageava, o Rio está inteiro em “Da Gema”, parceria de Caetano e Waly Salomão, poeta adorado por Bethânia e seu amigo íntimo. Todas as particularidades e a valorização de uma sensualidade feminina que beira o escandaloso marcam a canção. A figura feminina volta à cena, carnal, corporalmente estonteante. É o Rio que fascina, se exibe para Macabéa e a atordoa, segrega.

A penúltima música, “Sucesso Bendito”, de Caetano, se configura como metacanção para Sarah Mirella. Ou seja, elabora e comenta a própria criação musical, suas vicissitudes, características e dilemas. Tema recorrente na obra do baiano. A busca do sucesso criativo, que atinja emocionalmente um outro, a luta com a palavra, parece tocar na própria criação de Clarice de seu narrador, Rodrigo, que se digladia com a figura de Macabéa para representá-la, crua, inteira e cheia.

A já clássica interpretação de “Sonho Impossível” de Bethânia para a música de Ruy Guerra e Chico Buarque encerra brilhantemente o disco. Já tendo sido cantada pela intérprete 10 anos antes no mítico “A cena muda”, de 1974, aqui ela volta em versão de disco. Toda a sentimentalidade, a vontade de “virar esse mundo/Cravar esse chão” demonstra contornos o perísticos, com orquestras. E o delírio, ressaltado como essencial para a santo-amarense em entrevistas recentes, é vocalizado já na época como a chave para o fim da infinita aflição, que, aliado ao fato de morrer de paixão, vai fazer o mundo “ver brotar uma flor do impossível chão”. A escolha da canção para finalização do álbum representaria a esperança para Macabéa num outro plano? para Bethânia nesse mesmo plano terreno? para o próprio mundo? A escutar. Muitas vezes.

TEXTO POR: JOÃO VICTOR CUNHA, Bacharelando em Letras pela UERJ.