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Gilberto Gil

O tempo sempre foi algo onipresente na vida de Gilberto Gil, tanto quanto para qualquer ser humano nesse mundo. Mas a diferença de Gil para os demais se revela justamente no fato de que o “Tempo Rei”, sobre quem ele cantou em 1984, não parece reinar sobre ele, muito pelo contrário, ele é quem parece governar sua própria ordem temporal. Tudo começa em 26 de junho de 1942, quando nasce o primogênito de José Gil Moreira (1913-1991), médico, e de Claudina Passos Gil Moreira (1914-2013), professora. 

Desde os três anos de idade, Gilberto Gil Passos Moreira já demonstrava interesse pela música, fascinado com os sons de sua cidade e com as vozes dos grandes artistas daquela época, tais como Orlando Silva, Bob Nelson e Luiz Gonzaga. Este último faria com que o menino se apaixonasse pelo som da sanfona e pelo ritmo do baião, duas coisas que jamais sairiam da vida do futuro artista. Em 1952, se muda com a irmã para Salvador e, nesse mesmo ano, inicia aulas no Colégio Nossa Senhora da Vitória e na Academia de Acordeom Regina, onde se dedica ao aprendizado do instrumento. Nessa época, começa a receber a influência dos compositores e cantores locais, como Dorival Caymmi, principalmente, além de estabelecer o primeiro contato com o Jazz e ritmos de outras partes do país. 

Aos 18 anos de idade, já tinha seu primeiro grupo musical, “Os Desafinados”, onde tocava acordeom e vibrafone. A paixão por esses dois instrumentos continuaria por muitos anos. Porém, ao ouvir João Gilberto e seu álbum “Chega de Saudade”, lançado em 1959, Gil decide aprender violão. 

No início da década seguinte, já com o ensino médio concluído, tenta seguir por caminhos mais ortodoxos e presta vestibular para engenharia, não sendo aprovado. Mesmo assim, em 1961, é admitido para Administração na Universidade Federal da Bahia. Durante o período letivo, participou de diversas atividades culturais, seminários de música e outras coisas que fizeram seu arcabouço intelectual e estético aumentar significativamente. Nesse período, conhece Belina de Aguiar, com quem se casaria e teria duas filhas, Nara e Marília, nascidas em 1966 e 1967, respectivamente.

Ainda na universidade, Gil continuou com suas peripécias musicais, se tornando inicialmente um compositor de jingles, a partir de 1962. Mas, pouco tempo depois, sua primeira composição, “Bem Devagar”, é gravada pelo grupo feminino “As Três Baianas”, lançada num compacto que tem a participação de Gil tocando acordeom. 

Nessa época, aparecia em diversos programas de TV, o que fez ser reconhecido como um ídolo por um rapaz chamado Caetano Emanuel Viana Teles Veloso, amigo e parceiro histórico, que Gil conheceria no final de 1963. Logo depois, passaria a andar também com as cantoras Gal Costa e Maria Bethânia. Estava formada ali uma das maiores uniões que a música popular brasileira veria. 

Em junho de 1964, o quarteto de amigos, com a adição de Tom Zé, iniciaria o espetáculo “Nós, por exemplo…” inaugurando o Teatro Vila Velha, em Salvador da Bahia. O repertório musical era assinado por Gil e Santana, com suas composições autorais e de outros autores, como Dorival Caymmi. No ano seguinte, Gil é dirigido por Caetano Veloso em “Individual”, sua primeira apresentação solo.

No fim de 1964, se forma na faculdade e passa a morar em São Paulo com o objetivo de trabalhar na área de administração de empresas. Quem via o jovem recém-formado administrador, não poderia imaginar que este se tornaria, década depois, um dos maiores músicos brasileiros de todos os tempos.

Em 1965, passa a ter parcerias musicais com Torquato Neto, José Carlos Capinam e se apresenta com Caetano, Gal e Bethânia no “Arena Canta Bahia”, dirigido por Augusto Boal, encenado no Teatro Brasileiro de Comédia, em Sampa. Também grava sua primeira fita demo com trechos de 18 canções e canta “Iemanjá”, com Othon Bastos, no V Festival de Balança, feito pelo Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie. O evento levou Gil a ser convidado a lançar o primeiro single de sua carreira distribuído por um grande selo: “Procissão”, gravado pela RCA. 

Em 1966 participa do primeiro festival da canção, com “Minha Senhora”, interpretada por Gal Costa. No ano seguinte, o cantor lança seu primeiro álbum, “Louvação”, contendo um de seus primeiros sucessos, a canção “Viramundo”. Nesse mesmo ano, participa da marcha contra a guitarra elétrica, mas apenas por apoio a Elis Regina, por quem revelou ser apaixonado muitos anos depois. A relação de Gil com esse instrumento, figura central para o desenvolvimento do que viria a se tornar o tropicalismo, revelar-se-ia muito mais harmônica do que o ocorrido neste primeiro episódio.

Em 1967, defende junto com Os Mutantes, numa apresentação histórica no Festival de Canção Brasileira, sua composição “Domingo no Parque”, escrevendo definitivamenteseu nome na história da música brasileira. Junto com “Alegria, Alegria” de Caetano Veloso, essa canção daria início ao movimento Tropicalista, que combinava influênciasda Jovem Guarda, dos Beatles, da Banda de Pífaros de Caruaru, de João Gilberto e muito mais. 

O ano de 1968 seria apoteótico para o Tropicalismo. Nele, Gilberto trabalhou em seu álbum solo homônimo e no disco coletivo “Tropicália ou Panis Et Circenses” juntamente com Caetano Veloso, Os Mutantes, Gal Costa, Nara Leão e Tom Zé. Ambos os trabalhos seriam eleitos posteriormente como parte dos melhores discos da música brasileira de todos os tempos, figurando inclusive em listas internacionais de música. Em setembro, no Festival Internacional da Canção, Gil e Caetano participam com as músicas “Divino Maravilhoso”, interpretada por Gal Costa, e “É Proibido Proibir”, cantada por Caetano. Nessa última, entre as vaias da plateia e o improvisado, inspirado e agressivo discurso de Caetano, uma profecia: “Gilberto Gil está aqui comigo para acabarmos com toda a imbecilidade que reina no Brasil”. 

Apesar de o movimento ter alcançado o sucesso, nem tudo eram flores, muito pelocontrário: tudo era sangue, suor e lágrimas. No final desse ano, é instaurado o AI-5, ato institucional que aumentou a repressão na ditadura. Os Tropicalistas, acusados de serem subversivos, começam a ser perseguidos. Figuras chave do movimento, Caetano e Gil são presos em São Paulo, no dia 13 de dezembro. Os dois foram soltos apenas em fevereiro de 1969, partindo para a Bahia e lá permanecendo sob custódia até julho. Assim que saiu da cadeia, Gil corre para gravar junto com Caetano e Rogério Duprat. Deste modo, lança seu disco solo homônimo contendo o clássico “Aquele Abraço” e participa do “álbum branco” de Caetano Veloso, onde toca violão e faz backing vocals. Meses após a soltura, os dois são forçados pelos militares a se exilarem do país e fazem um show de despedida no Teatro Castro Alves, em Salvador, no dia 21 de Julho, para arrecadar fundos para a viagem. A apresentação foi gravada clandestinamente e seria lançada em 1972, com qualidade inferior de som, porém, servindo como documento histórico para a cultura brasileira. 

Já em Londres, junto com a esposa Sandra Gadelha, nasceu seu terceiro filho, Pedro, em17 de maio de 1970. Por lá, lança um novo disco, o homônimo de 1971. Além disso, faz uma série de shows com Gal Costa, sendo que, um deles, apresentado no dia 26 de novembro, seria gravado e lançado só em 2014. No setlist, sucessos consagrados como “Viramundo” e “Procissão”, incluindo novas canções como “Oriente”. Também em 1971, junto com Caetano, participa do Festival da Ilha de Wight, inicialmente como espectador e posteriormente como uma das atrações, sendo celebrado pela imprensa britânica, ao lado de Joni Mitchell, The Who e outros gigantes da música mundial. Gil aparece em uma das filmagens do festival, assistindo ao show do jazzista Miles Davis, um de seus maiores ídolos. Nesse mesmo dia, o brasileiro pôde conhecer de perto o trompetista americano que, por sua vez, o apresentou a ninguém menos que Jimi Hendrix, poucos dias antes da morte do famoso guitarrista. No ano seguinte, é liberado do exílio e volta ao Brasil, onde grava “Expresso 2222”, um de seus trabalhos mais celebrados, contendo influências do rock clássico e também do forró, com com faixas como “Back in Bahia”, “Ele e Eu” e “Sai do Sereno”, essa última cantada com Gal Costa. 

Em 1973, dá início às gravações de “Cidade do Salvador”, álbum que seria oficialmente lançado apenas em 1999. Em abril, se apresenta no festival Phono 73, ao lado de Chico Buarque. Juntos, interpretaram, ou melhor, tentaram interpretar a canção “Cálice”, primeira e única parceria da dupla. No entanto, foram sabotados pela censura, que cortou o som de seus microfones e impediu a apresentação da canção. Ainda nesse festival, canta “Filhos de Gandhi” junto com Jorge Ben numa apresentação antológica, com direito à reverência de outros músicos presentes. No início do ano seguinte, se apresenta com Gal e Caetano no Teatro Vila Velha, em Salvador, e o registro se torna o álbum ao vivo “Temporada de Verão”. No mesmo ano, se apresenta em São Paulo com show que mais tarde daria vida ao disco “Gilberto Gil: Ao Vivo” ainda em 1974. Nessa época, nasceu sua quarta filha, Preta Maria, em 08 de agosto. 

O ano de 1975 marcaria uma grande fase na carreira de Gil. O cantor lançou uma parceria com Jorge Ben, em disco duplo onde os dois tocam violão numa gravação ao vivo em estúdio, com versões longas para diversas de suas composições, com foco especial na versão de 12 minutos de “Filhos de Gandhi”. Também nesse ano, Gil lança “Refazenda”, primeiro disco da trilogia Re, com estética mais interiorana e influências do jazz em faixas como “Essa é pra tocar no rádio”, e do forró em “Lamento Sertanejo”. 

No início de 1976, nasce sua quinta filha, Maria, em 13 de janeiro. Nesse mesmo ano, para comemorar os 10 anos de carreira, os quatro baianos se reúnem numa turnê que roda o Brasil. Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa seriam conhecidos a partir daquele momento como “Os Doces Bárbaros”. Os shows virariam disco duplo ao vivo e, apesar de extremamente cultuada hoje, a reunião na época foi encarada friamente por certos setores da crítica musical. Em 7 de julho, durante a turnêdos Bárbaros, Gil é preso juntamente com o baterista Chiquinho Azevedo, por porte de maconha em Florianópolis, Santa Catarina. Por ondem do juiz, os dois são internados no Instituto Psiquiátrico São José e saem no dia 20 do mesmo mês, para continuarem otratamento no Sanatório Botafogo. Logo após esse fato, Gil e Chiquinho voltariam para a turnê pelo país.

Finalizado o encontro histórico, chega o ano de 1977 e, com ele, uma das experiências mais marcantes na vida de Gil, o Festival Mundial de Arte e Cultura Negra em Lagos, Nigéria. Junto com Caetano, passa um mês tomando contato com a cultura africana e volta renovado ao Brasil, pronto para lançar o segundo disco de sua trilogia, “Refavela”, dessa vez mergulhado na música negra, nos batuques e no ritmo afrobeat. Em outubro desse ano, se une com Rita Lee numa turnê conjunta intitulada “Refestança”, em que ambos celebravam suas recentes saídas da prisão, além de relembrar os velhos tempos onde se apresentavam juntos, quando Rita ainda fazia parte dos Mutantes, grupo que acompanhava Gil no início da carreira.

Em 1978, faz uma de suas apresentações internacionais mais aclamadas, no Festival Internacional de Jazz de Montreux, na Suíça. Ao lado de Pepeu Gomes, realiza uma apresentação espetacular que incendeia o público europeu ao apresentar a força da música brasileira. Nesse mesmo ano, grava em Los Angeles o álbum “Nightingale”, produzido por Sérgio Mendes e voltado para o público internacional. No ano seguinte, ainda em solo americano, grava o último álbum da trilogia Re, “Realce”, o mais bem sucedido comercialmente dos três. Com influências do soul e da disco music, o trabalho seria marcado pelo cover de “No woman, no cry”, que se transformaria em “Não chore mais”, versão em português feita por Gil.

Em 1980 se separa de Sandra Gadelha e começa a viver com Flora Giordano, que conheceu em 1979. Com Flora, ele tem os filhos Bem (13 de janeiro de 1985), Isabela (3 de janeiro de 1988) e José (27 de agosto de 1991). Na primeira metade da década, lança os discos “Luar” (1981), “Um Banda Um” (1982), “Extra” (1983), “Raça Humana” (1984)” e “Dia Dorim, Noite Neon” (1985), sendo que os dois primeiros têminfluência da música pop e da discomusic, o segundo tem raízes no reggae e os três últimos beberam na fonte do pop rock, que era tendência à época. Todos eles aliados a outros elementos diversos, como a música eletrônica, por exemplo. Em 1989, lança “O eterno Deus Um Dança”, trabalho reflexivo e de tom provocador, encerrando sua produção na década de 80. 

Em 1991, lança “Parabolicamará”, em que mais uma vez reafirma sua faceta futurista e contestadora, fazendo de homenagens ao Dorival Caymmi a respostas sobre a questão do “fim da história”, que era tema central das discussões políticas naquele momento. Dois anos depois, em 1993, lança com Caetano Veloso o álbum “Tropicália 2” para celebrar os 25 anos da Tropicália. Apesar da pretensão em lançar um segundo “Tropicália” sem os outros tropicalistas, o álbum foi recebido positivamente e trouxe clássicos como “Haiti” e “Desde que o samba é samba”.  Um ano depois, lança o tão sonhado “MTV Unplugged”, sucesso entre os artistas estrangeiros, onde apresenta sua obra de forma acústica. No mesmo ano, é homenageado junto a Caetano, Bethânia e Gal pela Estação Primeira de Mangueira no desfile de carnaval com o enredo “Atrás da Verde e Rosa só não vai quem já morreu”. No fim da década, em 1997, lança “Quanta”, um de seus trabalhos mais ousados, em que discute física, ciência, arte, mas sem deixar de lado o amor em canções como “Estrela”. Em 1999, cria o álbum ao vivo “Quanta Gente Veio Ver”, eleito o álbum do ano na categoria “música do mundo” do Grammy.

Gil inicia o novo milênio com uma parceria histórica, lançando o disco “Gil e Milton”, que marca sua união com Milton Nascimento, num trabalho que misturava canções antigas, novas composições e covers, por exemplo, a música do argentino Fito Paez “YoVengo A Te Ofrecer Mi Corazón”. Há também uma participação especial da dupla Sandy e Junior na faixa “Duas Sanfonas” em que Gil e Milton tocam acordeom. Durante a década de 2000, Gilberto lança os seguintes trabalhos: a trilha sonora “As Canções de Eu, Tu, Eles” (2000), as regravações de músicas de Bob Marley em “Kaya N’Gan Daya” (2002), a interpretação em voz e violão de seus maiores sucessos em “Gil Luminoso” (2006) e o álbum de inéditas “Banda Larga Cordel” (2008). A primeira metade dos anos 2000 ainda marcaria a sua atuação como ministro da cultura no governo Lula em 2003, cargo que exerceria até 2008, realizando um desejo talvez recrudescido daquele jovem baiano recém-formado em Administração. Ainda em 2003, faz uma turnê com Maria Bethânia pela Europa. Um ano antes, em 2002, se reuniu com os Doces Bárbaros para dois shows históricos, um em Copacabana, no Rio, e outro no Ibirapuera, em São Paulo. 

Chegando ao ano de 2010, lança “Fé na Festa”, trabalho dedicado às festas populares dos santos, encarado como um “retorno às origens”. No restante da década de 2010, lança os seguintes trabalhos: uma reinterpretação de seus clássicos com orquestra em “Concerto de Cordas e Máquinas de Ritmo” (2012), a parceria com Ivete e Caetano num especial da TV Globo (2012), uma releitura de sambas e bossas em “GilbertosSamba” (2014), o reencontro histórico com Caetano Veloso para celebrar os 50 anos de carreira de ambos em “Dois Amigos, Um Século de Música” (2015) e a parceria com Gal Costa e Nando Reis no show “Trinca de Ases” (2018). Ainda em 2018, o artista lança “OK OK OK”, que é, até então, o seu último álbum de inéditas, em que ele apresenta um repertório moderno, tratando de temas como maternidade, tecnologia, redes sociais e política. 

Em 2024, anuncia sua aposentadoria das grandes turnês e, no ano seguinte, inicia “Gil Tempo Rei”, com shows de mais de duas horas em grandes estádios pelo país, com repertório que passa pelas diversas fases da carreira do cantor baiano. Desde o início de sua carreira, ainda nos anos 60, até o presente momento, ao realizar sua última grande turnê, percebemos que o tempo para Gilberto Gil é sempre um algo a ser explorado. A expressão “à frente de seu tempo” soa cafona e imprecisa para descrever a importância e o significado da obra de Gil. Eis um artista dos nossos tempos, ligado às questões relativas à modernidade sem, todavia, olvidar das tradições que o acompanharam na construção do seu próprio ser. O artista nos ensina a amalgamar diferentes experiências e torná-las em coisas novas e verdadeiramente revolucionárias. “Tempo rei, transformai as velhas formas do viver” cantou Gil em 1984, mas certamente é o próprio Gilberto quem tem transformado o atraso do país em atualização constante, em forma, conteúdo e, principalmente, presença e significação. Gil é o rei de seu próprio tempo.

— Texto por: Gustavo Henrique Coelho.