
O show “Caetano & Bethânia” significa uma conquista geracional e uma renovação da presença dos irmãos nos palcos. Estrelas da constelação surgida nos anos 1960, Caetano e Bethânia preservam uma inteligência poético-musical de encher olhos e estádios, com domínio do pensamento e da performance de alcance popular, sem confrontos com vertentes mais recentes do pop. Caetano, aos 82 anos, e Bethânia, aos 78, estão no palco como artistas únicos que simbolizam a história coletiva de uma geração singular na música moderna.
É importante olhar Caetano enquanto Bethânia canta. A expressão cênica de Bethânia, rara cantora a produzir marcos no teatro brasileiro (“Rosa dos Ventos”, “Drama”, “A Cena Muda”), não é nenhum segredo. Mas, aqui, ela atinge uma dimensão inédita. A cantora-atriz essencializa os gestos, para se projetar no espetáculo audiovisual, e preenche os estádios com a sua voz. Tornou-se assim a nossa mais expressiva atriz de multidões, sensual e trágica. Pensei num instante maluco: Bethânia é a realização da utopia do “teatro de estádio” de Oswald de Andrade e Zé Celso. Olhei Caetano e percebi que, ao contemplar a irmã, ele parecia pensar sobre o mito teatral de Bethânia. Caetano pode ter instantes malucos no meio de cenas grandiosas.
O roteiro incorpora núcleos e motivos familiares expandidos em leituras multiculturais do Brasil. Tudo é uma questão pessoal. Nada é só uma questão pessoal, e o show se abre a visões panorâmicas. Os irmãos saem de uma cidade de interior (“Motriz” e “Não identificado”), celebram as religiosidades, alcançam a “Tropicália” e chegam ao pessimismo de “Marginália II”, de Gil e Torquato (“aqui é o fim do mundo”). O imaginário religioso não se restringe a igrejas e terreiros, e há espaço para o sebastianismo de “Um Índio”, crença mais oculta. O samba de roda do recôncavo, introduzido por “13 de Maio” no segmento inicial, surge como uma versão amplificada dos aniversários de outro irmão, o festeiro Rodrigo Velloso, no quintal da casa de Santo Amaro.
O show cruza as trajetórias dos irmãos e clareia os caminhos pessoais, representados também pelas canções de sucesso radiofônico, que demonstram a complexidade da vida comercial de ambos.
A junção de “Fé” e “Reconvexo” foi uma sábia reunião de duas canções nascidas da ira, afirmativas de sensibilidades brasileiras inspiradas pelo sagrado e profano. Além disso, as cidades e as irmandades da alma: Rio-Mangueira, Bahia e Sampa-tropicalismo; Gil e Gal. No figurino, os orixás.
Caetano cria o ponto de tensão do show. Na hora do louvor evangélico “Deus Cuida de Mim”, a plateia é menos acolhedora e conversa fiado. Embora o crescimento de igrejas neopentecostais me preocupe mais em uma perspectiva pessimista, reconheço sua coragem de enfrentar o próprio público, de inocular a dúvida e a dissonância, como “agent provocateur”.
Para Caetano, espetáculos dessa envergadura não fazem sentido sem esse grão de sal. Na turnê com Gil, “As Camélias do Quilombo do Leblon” cumpriu um papel análogo. Contestador ou contestado, ele continua a ser a mais influente inteligência artística do país.
“Caetano & Bethânia” é o mundo que uma família pode absorver, expandir e cantar.