Artigo Publicado no Suplemento Pernambuco de Junho de 2021.

No céu do Brasil do fim dos anos 1970, a democracia era uma estrela guia perdida já há vários anos. Os esforços para recapturar esse astro distante e dispô-lo novamente sob uma constelação visível a olhos nus foram diversos. As greves operárias, a organização política das minorias e a luta pela anistia foram algumas dessas gestações coletivas. Ao vivenciar fricções políticas importantes, o país passou a ser tomado por um fluxo de desejos diferenciado e difuso. Um fluxo que revitalizava tanto a consciência social e política do país quanto o seu inconsciente, como observou Suely Rolnik.O campo musical brasileiro foi um importante articulador desse inconsciente; não somente em sua face mais engajada, mas sob os signos do erotismo, da festa e de certa subversão queer.
Em 1978, Maria Bethânia não estava engajada em nenhuma frente democrática organizada. Mas, ao seu modo, não deixou de captar o seu quinhão de desejos em desalinho pelo ar. Enquanto Elis Regina se voltava para uma série de projetos engajados e Gal Costa buscava coesão artística e prestígio da crítica, para citar as duas principais concorrentes da artista à época, Bethânia estava sedenta por um repertório que atendesse aos seus anseios de então. O mais urgente deles era o amor, em suas faces mais exacerbadas e trágicas, eróticas e desesperadas. Mas também constavam em seus anseios a alegria e a liberdade, em associação às movimentações civis que adquiriam envergadura no país. No seio desses desejos à flor da pele, a cantora gestou o álbum Álibi.
Por vias indiretas, o sentimento em torno do disco começou a ser semeado em 1976, quando Bethânia propôs o projeto Doces Bárbaros a Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal. Em entrevistas, ela reclamou da dificuldade de encontrar novas canções pela falta de alegria e liberdade, e o show coletivo foi uma oxigenação pessoal importante para suprir essa demanda. Um pouco menos alegre, mas vistoso em seus anseios por festa e liberdade, o disco Pássaro Proibido foi lançado no mesmo período. A música-título havia sido escrita pela cantora a partir de um sonho sinistro sobre um pássaro proibido de cantar. Mas o carro-chefe do trabalho foi justamente o drama buarquiano Olhos nos olhos, que enfim apresentou o grito de alerta de Bethânia ao Brasil das rádios AM.
A canção rendeu à cantora o seu primeiro disco de ouro, feito que seria repetido no álbum seguinte, Pássaro da manhã, de 1977. A gravação que extrapolou as frequências elitizadas das FMs foi mais uma cartada buarquiana: Teresinha, mais erótica e menos doída do que a sua antecessora. Bethânia gradualmente se tornava uma artista popular como nenhuma outra de sua geração, e os seus anseios naquele momento pareciam se alinhar fortemente aos da população. Não se tratava apenas de anseios políticos stricto sensu, mas da possibilidade de sentirem alguma plenitude enquanto sujeitos desejantes, de vivenciarem catarses de ordem libertária e erótica, de serem consolados, e em certa medida protegidos, da violência de um amor abandonado, ou de um governo autoritário.
FEITO LOUCA, ALUCINADA E CRIANÇA
Avessa a movimentos e rótulos de quaisquer categorias, inclusive identitárias, Bethânia sempre desenhou a própria carreira voltada para a sua individualidade. Selvagemente fiel a si mesma, ela era irredutível quanto à matéria-prima de seu trabalho: apenas experiências e sentimentos profundamente pessoais. Por essa razão, ela rejeitou o posto de dama da canção de protesto após o sucesso de Carcará (de João do Vale e José Cândido, 1964), foi insubmissa à lógica competitiva dos festivais da segunda metade dos anos 1960 e declinou do convite para gravar Baby no disco-manifesto tropicalista, embora ela mesma tivesse encomendado a canção ao irmão. Ela se apavorava com a ideia de ser vinculada a bandeiras ou rótulos que limitassem as potencialidades de sua arte, e não estava aberta a concessões.
Álibi, no entanto, consistiu em uma interseção poderosa entre o que a cantora sentia e as demandas emocionais de uma parte numerosa da população. No disco, Bethânia se propunha a investigar a anatomia de um coração em estado de hemorragia. Era o coração de alguém que à noite rondava a cidade procurando seu interlocutor desesperadamente, e que disputava nos dentes o seu amor com um adversário sedutor. Compunham essa narrativa canções como Ronda(Paulo Vanzolini), O Meu Amor (Chico Buarque), Negue (Adelino Moreira e Enzo Passos), a ambígua canção-título do álbum, de Djavan, e Explode Coração (Gonzaguinha), carro-chefe de um disco quase todo veiculado nas emissoras AM. Nas camadas de ambiguidade e complexidade da cantora, aquele coração passional era também o coração de um país cujo sangue estava perigosamente coagulado, um corpo-nação prestes a declarar falência civil completa.
Para além de uma carga libidinal diferenciada, o disco dialogava com essas dores coletivas. Em contraste com o sonho soturno que havia dado origem a Pássaro Proibido, Sonho Meu (canção de Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho) abria um horizonte esperançoso para a década que se aproximava. Em dueto com Gal, Bethânia ressaltava a potência política de sonhar coletivamente e evocava artefatos preciosos, como a liberdade e a presença de quem desejamos por perto. Ao lado de Gal e Dona Ivone, ela apresentou o samba de roda a uma multidão ávida por essas demandas no evento do Dia do Trabalhador organizado pelo Centro Brasil Democrático, em 1979. Dois anos depois, o mesmo evento seria alvo de um atentado a bomba malsucedido por parte dos militares, que acabou se tornando um ponto de inflexão para a derrocada definitiva da ditadura.
O disco também atiçou os ânimos às vésperas da anistia por conta da inclusão de Cálice, canção de Chico e Gil, enfim liberada pela censura depois de cinco anos proibida. Na leitura rascante de Bethânia, se tornou uma das faixas mais populares do disco. Quando estreou o espetáculo baseado em Álibi, a cantora ampliou a narrativa da anistia em faixas como Angélica, composta por Chico para a estilista Zuzu Angel, assassinada pelos militares, e um texto de Carlos Drummond de Andrade sobre o momento (“Quero-te alta e perfeita, e não uma baixinha anistia de quatro dedos e andar cambaio/ Quero que voes/ Com asas te imagino, sobre os desencontros e mesquinhezas dos pobres intérpretes de tua grandeza luminosa/ […] Vem completa, vem de túnica imaculada, vem nua, anistia”). Ela ainda abria o show com o reggae Não chore mais (versão de Gil para No woman, no cry, de Bob Marley), uma espécie de hino emocional da anistia. Em 1979, fez quase tanto sucesso quanto o hino “oficial” O bêbado e a equilibrista (João Bosco e Aldir Blanc), de uma Elis Regina no ápice de seu ativismo democrático. Bethânia cantava precisamente o que uma multidão combalida e insegura queria ouvir naquele momento: “tudo, tudo, tudo vai dar pé”.
FESTIVO, ERÓTICO, QUEER
Desde seu projeto gráfico, Álibi sugere que sua potência subversiva não se restringia à relação simbólica com a anistia. Na capa, de ombros nus, ornada apenas com correntes e contas no pescoço, Bethânia se mostra com o rosto inclinado para baixo, com um olhar esquivado e reflexivo. O título “Álibi” aparece em vermelho vibrante, em maiúsculas, destacado sobre o fundo negro com os cabelos da cantora. Em contraste significativo, a contracapa de fundo claro não lista as canções a serem encontradas no disco; ao invés disso, expõe um jogo de línguas em êxtase, com sete pares de bocas molhadas sendo marcadas por beijos lancinantes. Não há rostos à mostra, a não ser fragmentos de queixos e narizes, mas os elementos visíveis são o suficiente para identificar rapazes beijando rapazes, moças beijando moças e rapazes e moças se beijando.
Bethânia estava longe de ser uma militante de movimentos de minorias sexuais, e dispensava com veemência definições identitárias que a imprensa tentava lhe atribuir. Em entrevista à revista Veja em 1973, ela comentou sobre o chamado Gay Power (“Detesto! Acho ridículo”) e gargalhou quando o entrevistador tentou associá-la às feministas emancipacionistas. Quando as perguntas tangenciaram o tema da homossexualidade, ela disse que não gostava de falar de “coisas amargas” e cortou o entrevistador: “Eu não minto para mim mesma. E basta!”.
No entanto, ainda que alheio às intenções de sua intérprete, Álibi foi gestado em um cenário propício para sentidos queerizantes. No contexto pós-desbunde, as minorias sexuais passaram a se organizar de maneira mais articulada e consistente, e os embates com a repressão militar se fortaleceram simbólica e institucionalmente. No ano em que o disco foi a público, o então chamado “movimento homossexual brasileiro” (MHB) organizou o coletivo Somos: Grupo de Afirmação Homossexual, o mensário Lampião da Esquina circulava em sua primeira edição e os circuitos de lazer heterodissidentes se multiplicavam consideravelmente país adentro — especialmente as casas noturnas nas quais transformistas, ao personificarem cantoras populares, eram as grandes estrelas.
Com a persona ultrarromântica apresentada em Álibi, Bethânia se tornou um personagem central na arte transformista. Assim como Gal, que se despediu em definitivo de poéticas engajadas e praticamente assinou um contrato de exclusividade com temas festivos a partir do disco Gal Tropical, de 1979 (em entrevista à Veja naquele ano, Gal reconheceria a aderência queer ao seu projeto de então: “se as bonecas e as sapatões me adoram, é porque eu sou linda, solta, e boneca gosta é disso mesmo, de luxo”). Os dois trabalhos garantiram às suas respectivas intérpretes a marca de primeiro milhão de discos vendidos, e assinalaram que a produção cultural mainstream pode engendrar, ainda que fora de seu radar de intenção, significados dissidentes. A própria ampliação da rede de fãs estimulada por esses trabalhos acionou a partilha de símbolos e significados que produziram sentimentos de pertencimento importantes, gerando redes de sociabilidade queer que tomavam forma a partir de fã-clubes, casas noturnas e nos próprios shows dessas artistas.
Entre dramas sofridos, confetes, plumas e paetês, os trabalhos de Bethânia e Gal desse período acabaram atuando como vetores involuntários para processos de subversão queer, assim como captaram os desejos difusos de um país emocional e politicamente esgotado, sob uma espécie de ressaca antecipada da ditadura. Se as expectativas para o fim da ditadura eram grandes, em 1985, quando sua derrocada foi enfim oficializada, o país vivenciava o início da pandemia da AIDS. A crise de saúde afetou significativamente o fluxo de desejos que havia sido engatilhado no fim da década anterior, mas não o abateu.
O Álibi de Bethânia é uma palavra-conceito ambígua. Um álibi, afinal, pode ser demandado docilmente ou desesperadamente por um amante, mas também pode ser exigido de maneiras brutais por um torturador (“Meu amor, a tortura está por um triz/ Mas a gente atura e até se mostra feliz”). A cantora parece aproximar o ardor feroz do desejo ao ardor pavoroso da carne queimada de eletrochoque. Parece dizer que se trata de um mesmo corpo-político em transe, mas em situações radicalmente distintas. No cateterismo a que Bethânia submeteu o Brasil, em 1978, mas ainda dentro da validade, o único diagnóstico possível é o de que não dá mais para segurar a explosão iminente de nosso coração civil.
