Falar sobre Caetano é como falar sobre nós mesmos. É como falar sobre o Brasil e sobre o mundo todo. Construtor da trilha sonora da vida da gente, o menino de Santo Amaro da Purificação, desde cedo, já demonstrava apreço pela arte ao desenhar tão bem utilizando o giz nas calçadas da cidade, no recôncavo baiano dos anos 40.
O gosto pela canção veio dos pais, José e Canô, que incentivaram os filhos a aprender piano. Na rádio, ouvia-se boleros, tangos e baiões, enquanto no quintal de casa o risco da faca no prato ditava o ritmo dos sambas de roda. Ainda antes de completar seus quatro anos de idade, o pequeno Caetano deu nome à futura maior intérprete da música popular brasileira: sua irmãzinha, Maria Bethânia.
Outras paixões, como a literatura de Clarice e o cinema, foram incentivadas pelo seu irmão mais velho, Rodrigo. Mas tudo pareceu pairar em silêncio quando, aos 17, ouviu João Gilberto. Dali por diante, sua percepção de mundo foi reiniciada ao incorporar os elementos revolucionários da bossa nova em sua concepção artística.
Já adolescente, para avançar nos estudos, Caetano mudou-se para a cidade de Salvador. E, como o piano ficou difícil de carregar, pediu à sua mãe algo mais maleável: um violão, instrumento esse que aprendeu a tocar quando viu Gilberto Gil na TV. Logo depois, conheceria seu mestre ao passar pela Rua Chile, no centro histórico da cidade. Em 1963, Caetano foi um dos primeiros a ouvir o canto de Gal Costa, uma jovem tímida que lhe fora apresentada por intermédio de sua futura namorada, Dedé.
Qualquer canção, quase nada, vai fazer o Sol levantar.
Em 64, participou do show Nós, por exemplo, nos eventos inaugurais do Teatro Vila Velha, em ato inaugural da junção de Gil, Caetano, Bethânia e Gal num mesmo palco. Já sofrendo os efeitos aterradores do golpe militar, decidiu abandonar a faculdade de Filosofia na Universidade da Bahia para cumprir uma missão dada por seu pai: acompanhar até o Rio a sua irmã Maria Bethânia, que foi substituir Nara Leão no espetáculo Opinião.
.jpg)
Se, anos antes, por conta de uma valsa de Capiba, foi Caetano que deu o nome à Bethânia, seria agora a vez dela alavancar o nome do mano para todo o Brasil, por intermédio do sucesso da canção De Manhã, composta por ele em 1965. Nesse mesmo ano, Caetano gravou seu primeiro compacto simples com as canções Samba Em Paz e Cavaleiro.
Passados dois anos, elaborou com Gal Costa o primeiro LP da carreira dos dois: Domingo. Um disco em conjunto foi a solução encontrada pela gravadora para esses dois novos talentos. Feito nos horários menos disputados do estúdio e, por isso, contrariando os costumes notívagos de Caetano, Domingo retratou a inspiração bossanovista. Mas, já ali, era certo que mudanças na sua forma de fazer música estavam prestes a acontecer. Na contra-capa, ele escreveu: “minha inspiração agora está tendendo para caminhos muito diferentes dos que segui até aqui”.
Em 1967, apresentou a canção Alegria, Alegria no III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em São Paulo, com o grupo de rock argentino Beat Boys. Junto com Gilberto Gil, que cantou Domingo no Parque ao lado dos Mutantes, nascia ali o que veio a se chamar de Tropicalismo.
Eu organizo o movimento. Eu oriento o carnaval. Eu inauguro o monumento no planalto central do país.
O tropicalismo inaugurou a ruptura com o bom gosto puritano que cercava o ambiente da canção feita no Brasil. A partir da Tropicália de Tom Zé, inspirada na antropofagia de Oswald, é que se pôde chegar ao máximo da potencialidade criativa tanto na música, quanto na poesia de Torquato e Capinam, no cinema de Glauber e na plástica de Oiticica. Do modo de se vestir à maneira de se portar no palco, o movimento organizado por Caetano e Gil transformou as bases de interpretação cultural predominantes no país.
Tanto abalo gerou reação. Duas semanas após a assinatura do Ato Institucional número 5, que acirrou a ditatura militar no Brasil em 1968, Caetano e Gil foram presos por dois meses e, depois, colocados em confinamento na cidade do Salvador. Em casa, Caetano gravou as bases de voz e violão para o seu disco homônimo de 1969: nele, em protesto, uma capa toda branca, apenas com a sua assinatura. Os shows de despedida, ao lado de Gil, aconteceram no Teatro Castro Alves em julho daquele ano, que mais tarde seriam registrados no disco Barra 69.

I’m alive and vivo, mas you don’t know me.
Colocados de maneira forçada pelos militares num avião rumo ao exílio, Caetano e Gil fixaram morada em Londres, após passarem por Lisboa e Paris. Na capital inglesa, Caetano gravou dois discos, o melancólico Caetano Veloso (1971) e Transa (1972), um dos mais reverenciados de sua carreira, misturando elementos do cancioneiro popular brasileiro às influências de rock e do reggae.
Já de volta ao Brasil, em 1972, Caetano teve seu filho com Dedé: Moreno, o maior acontecimento de sua vida adulta. À época, sentiu-se obrigado a se trancar por semanas num estúdio acompanhado apenas de um técnico de som para gravar sons da rua, vozes, grunhidos e percussão sobre a pele e os ossos. Era o Araçá Azul sendo gestado numa espécie de necessidade de expressão quase orgânica. Lançou, também, o registro do show feito com Chico Buarque no Teatro Castro Alves, em Salvador. A censura da época impôs a colocação do barulho de palmas para deixar inaudíveis trechos das canções.
Em 1975, gravou Jóia e Qualquer Coisa, dois discos que vinham cada um com um manifesto. Joia representava canções mais redondas, preenchido de silêncios bem inseridos e sons mais limpos. Qualquer Coisa, a outra metade, era Beatles, sons pesados de bateria, canções latinas, versões. A capa original de Jóia vinha com o desenho de Caetano, Dedé e Moreno nus, feito pelo próprio cantor a partir de uma foto. Para tapar os sexos, pássaros voando. Mas a ousadia artística foi objeto de censura, o que resultou no recolhimento da tiragem e reimpressão da capa apenas com os pássaros. Quanto à capa de Qualquer Coisa, sua inspiração foi o disco Let it be dos Beatles, de 1970.
Alto astral, altas transas e lindas canções.
.jpg)
A partir de um sonho de Bethânia; ela, Caetano, Gil e Gal toparam entrar em excursão pelo Brasil em 1976 e, com isso, nascia o grupo Doces Bárbaros. A animação do reencontro foi tão repentina que, em poucos dias, Caetano e Gil compuseram um repertório inédito para o show concebido através da temática dos ritos de religiões de matriz africana e estreado no dia de São João. O encontro gerou um disco duplo ao vivo e um filme com momentos da turnê.
Em 1977, após ficar um mês com Gil durante um festival de música na Nigéria, Caetano fez o disco Bicho, trazendo a musicalidade africana encontrada por lá, com músicas para dançar, como Odara e Two Naira Fifty Kobo. A patrulha ideológica da época não gostou nada e acusou Caetano de ter se alienado ao longo do tempo. O Leãozinho, Tigresa e A Grande Borboleta justificam o título do disco, cuja capa é um outro desenho de Caetano.
Em 1978, tudo de novo: juntou-se com Maria Bethânia para um show especial a fim de levantar fundos para a igreja de Santo Amaro da Purificação. O espetáculo gerou o disco Maria Bethânia e Caetano Veloso Ao Vivo.

Coragem grande é poder dizer ‘sim’.
De 1978 até 1983, Caetano viveu um dos momentos mais celebrados de sua carreira: a parceria com A Outra Banda da Terra, marcada pela liberdade de criação e pela intensidade das novas composições. Cansado das interferências da figura de um produtor em seus trabalhos, Caetano montou a banda da maneira mais orgânica possível, com shows muito descontraídos. Esse período gerou os discos Muito – Dentro da estrela azulada (1978), Cinema Transcendental (1979), Outras Palavras (1981), Cores, Nomes (1982) e Uns (1983).
São creditados a essa fase de sua carreira boa parte de seus maiores sucessos: Você é linda, Oração ao tempo, Cajuína, Sampa, Trem das Cores…
Com o fim de A Outra Banda da Terra, passou a excursionar com a Banda Nova, enveredando pelo pop rock dos anos 80. Velô (1984) é a síntese desse momento que significou mais uma transformação nos rumos da carreira do artista. Caetano, ao experimentar de antemão todo o novo repertório em shows ao vivo, para, somente depois, gravá-lo em estúdio, demonstra, mais uma vez, que é a reinvenção a marca de sua trajetória artística.
Em 1986, cumpre o desejo de dirigir um filme. Assim, nasce o experimental O cinema falado, inspirado na leitura de Três Tristes Tigres, do cubano Cabrera Infante. Além disso, faz um show de voz e violão no Copacabana Palace e o lança sob o título de Totalmente Demais, alcançando mais de 250 mil cópias vendidas. Posteriormente, grava um disco também de voz e violão nos Estados Unidos que seria lançado no Brasil anos depois. Na TV Globo, comanda a série de programas Chico & Caetano.
E nunca o ato mero de compor uma canção pra mim foi tão desesperadamente necessário.
Já no final dos anos 80, lança Caetano (1987) e Estrangeiro (1989), com retorno aos moldes de discos com produção mais profissional. O primeiro foi lançado sob o silêncio de um artista já cansado de tanto conceder entrevistas e se chamaria José, se o poeta Carlos Drummond de Andrade não tivesse morrido à época do lançamento. O segundo, produzido por Arto Lindsay e Peter Sherer e gravado em Nova York, inclui conceitos tropicalistas, a começar pela capa, que é a representação do cenário de O rei da Vela, feito por Hélio Eichbauer.
Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem juízo final.
Circuladô (1991) inaugura a extensa parceria entre Caetano e Jaques Morelenbaum, com o maestro participando de duas faixas do disco. Se Estrangeiro era mais o mundo, Circuladô é todo o Brasil ao mostrar, de cara, dores e delícias que latejam em quem nasce abaixo da Linha do Equador, onde a indefinição é o regime: Fora da Ordem e O Cu do Mundo são retratos de um país marginalizado e em constante ebulição. Mas tem também Milton Nascimento, Haroldo de Campos, Guimarães Rosa, Jorge Ben Jor. Ou seja, há jeito.
Na década de 90, da duradoura união com Paula Lavigne, Caetano teve mais dois filhos: Zeca e Tom, nascidos, respectivamente, em 1992 e em 1997. Tropicalia 2 (1993) foi feito ao lado de Gil em comemoração aos 25 anos do movimento. Depois disso, Caetano adotou o terno para se tornar un caballero de Fina Estampa (1994) ao dar, às canções hispano-americanas, que tanto ouvia durante sua infância em Santo Amaro, a sua própria interpretação. E, talvez, definitivas versões, como no caso de Un vestido y un amor, do cantor argentino Fito Páez.
Gay Chicago negro alemão axé music.
Em 1997, lança Livro, idealizado durante a turnê do Fina Estampa pela Itália. Nele, traz a junção dos metais na linha cool jazz com a batucada encontrada nas ruas de Salvador. O disco, merecedor do Prêmio Grammy na categoria World Music, foi lançado concomitantemente ao livro Verdade Tropical, uma espécie de autobiografia. O registro ao vivo do show de Livro, intitulado Prenda Minha, vendeu milhões de cópias devido, também, ao grande sucesso de Peninha na voz de Caetano: Sozinho.
Entre uma turnê e outra, vai até a República de San Marino para gravar um show em homenagem ao diretor de cinema italiano Federico Fellini e à sua esposa e atriz, Giulietta Masina, personagens que foram estruturantes na construção da sua paixão pelo cinema, ainda nos anos 50, em Santo Amaro. A singeleza de Omaggio a Federico e Giulietta (1999) disfarça o problema na voz que preocupou Caetano dias antes dessa apresentação.
É só ter alma de ouvir e coração de escutar.
Em 2000, praticamente com o mesmo grupo musical do disco anterior, grava Noites do Norte, inspirado na leitura de Minha Formação, do abolicionista Joaquim Nabuco. Um trecho impactante desse livro seria o catalisador para as novas ideias: “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Desse modo, nasce um disco da vontade de experimentar a voz de Caetano com a percussão baiana sob as orquestrações de Jaquinho. 13 de maio, Zumbi e Tempestades Solares são marcantes.
Posteriormente, Caetano e Jorge Mautner lançam Eu Não Peço Desculpa (2002). A ideia surgiu do próprio Caetano, após inúmeras e longas conversas com o amigo. Assim, concebem canções em tom mais jocoso que tratam dede o sexo até o clima de terrorismo mundial vivido à época. Logo depois, Caetano rendeu homenagens aos standards de língua inglesa com o álbum A foreign sound (2004).
Odeio você. Odeio você. Odeio você.
À vista, mais uma reviravolta na carreira. Após anos e anos de shows com big band, Caetano quis montar uma banda de rock básica: guitarra, baixo e bateria. Surgiu, assim, Cê (2006), talvez o disco mais visceral do artista. Letras fortes, sexuais e exorcizantes marcaram esse período de colaboração com Pedro Sá, Marcelo Callado e Ricardo Dias Gomes. Odeio talvez seja a canção-tema desse período na carreira de Caetano. Os versos belicosos não assustaram Jorge Mautner, que a reconheceu como sendo, na verdade, uma verdadeira declaração de amor. A parceria rendeu também Zii e Zie (2009), com seus transambas e transrocks feitos a partir das discussões com internautas no blog Obra em Progresso; e Abraçaço (2012), que encerrou a trilogia Cê em ambiente de melancolia e de inspiração política.


Em 2015, reúne-se novamente com Gil para celebrar cinquenta anos de carreira com a turnê Dois Amigos, Um Século de Música, que rodou pelo Brasil, Europa e Estados Unidos. O encontro gerou uma nova parceria: a canção As Camélias do Quilombo do Leblon, que cita a cidade de Hebron, na Palestina, visitada pelos cantores durante a passagem do show por Tel Aviv. Já em 2017, Caetano realizou o desejo antigo de ter todos os seus três filhos juntos no mesmo palco: nascia o show Caetano Moreno Zeca Tom Veloso que, mais tarde, viria a se chamar Ofertório, título da canção feita por Caetano para a missa de noventa anos de sua mãe, Dona Canô.
João Gilberto falou e no meu coco ficou.
Após o confinamento da pandemia, Caetano lançou, após nove anos, seu primeiro álbum de inéditas. Meu Coco (2021) trouxe uma mirada sobre tudo o que se passa na cabeça do cantor: Naras, Bethânias, Elis, João Gilberto, Gil, Gal, Noel, Caymmi, Ari… Nomes, nomes. Para além disso, evidencia também a constatação do lado macabro das redes sociais e a síntese do seu desejo de que o Brasil tome para si a responsabilidade de salvar o mundo. O show Meu Coco estreou em Belo Horizonte e percorreu todo o Brasil, a Europa e os Estados Unidos entre os anos de 2022 e 2024

Fé pra quem é foda.
Em agosto de 2022, Caetano comemorou seus 80 anos num show especial com a participação de seus filhos, Moreno, Zeca e Tom, e de sua irmãzinha, Maria Bethânia. O rápido ‘compartilhar de palco’ reacendeu a vontade de se ter os filhos de Santo Amaro cantando juntos. Assim, dois anos depois, Caetano e Maria Bethânia começaram uma turnê histórica pelo Brasil. As grandes apresentações em estádios ficaram lotadas para assistir a um show que contou a vida deles, da gente e da música do Brasil. Gal, Gil, a Bahia, Dona Canô e Seu Zezinho. Roberto e Erasmo. Raul. Nós mesmos entrelaçados por uma sequência de canções que manifestaram a fé no que há de mais sagrado: o próprio ato de trazer, consigo, algo em que acreditar. O show passou por 10 cidades e atraiu mais de 500 mil expectadores.
Teorias descansandinhas à parte, Caetano anunciou, recentemente, num post do instagram, a vontade de compor e de gravar novas canções. Durante todo o ano de 2025, ao menos uma vez por mês, haverá apresentações para grandes públicos em festivais, demonstrando o que sempre esteve tácito para seus fãs: o artista não se aposenta. E o tempo? Ah, o tempo não para. E, no entanto, Caetano nunca envelhece.
Francisco Taboza | Blog Caetano É Foda | Instagram @caetanoefoda
Imagens retiradas do blog: Caetano Veloso En Detalle, por Evangelina Maffei.