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#OlharDoFã: “Pássaro da Manhã” — do pássaro à tigresa, Por Rafael Lima Furst.

“Ergue a mão e encontra ela 

E vê que ele mesmo era 

A princesa que dormia” 

É com esse poema de Fernando Pessoa (poeta de sua vida) que Bethânia inicia uma tradição que perdura até hoje em suas obras: a intercalação de músicas com citações de poemas e textos. Bethânia foi, de certa forma, a precursora desta forma de fazer shows e álbuns, título que a artista carrega com muita honra e divide muito lindamente com um dos seus mestres/professores, como ela gosta de salientar, Fauzi Arap, que foi quem mostrou a Bethânia que era possível misturar essas duas artes que se complementam. 

Logo após a citação do poema de Fernando, “Eros e Psique”, que mostra o encontro do inconsciente e do consciente e a completude desses dois opostos em um só, mostra a busca pelo si, este poema vai preparar o ouvinte para a próxima música que vai falar também sobre os opostos de um mesmo ser, a artista vai cantar a primeira música no álbum, de autoria de seu irmão Caetano Veloso, “Tigresa” que vai falar sobre a fragilidade e a força do feminino, a canção também foi gravada por outras cantoras como Gal Costa e Zezé Motta (musa inspiradora da canção, de acordo com o autor). 

O fato é que, embora a musa inspiradora desta canção não seja Bethânia, ao interpretá-la, ela se torna a tigresa. Nenhuma das outras intérpretes desta música (apesar de fazerem lindamente) se aprofundam tanto como Bethânia; ela de fato se apropria e se torna a tigresa. Sua interpretação é visceral, diferentemente da maneira doce das outras cantoras e do próprio compositor de cantar. Bethânia canta com dor e raiva em sua voz, como uma verdadeira tigresa. Essa música possui uma letra política e retrata a realidade do feminino em meio a uma sociedade opressora: “E a tigresa possa mais do que o leão”. 

A intérprete dá continuidade ao álbum com o texto de Fauzi Arap, que de certa maneira descreve o álbum e também a cantora: “Você é um rosto na multidão e eu sou o centro das atenções”. Em sequência, canta a música “Um jeito estúpido de te amar”, canção escrita pelos irmãos Isolda e Milton Carlos, música que dá início a uma parte mais romântica do álbum, mas nem por isso menos politizada. Essa sequência de músicas românticas irá seguir com o bolero “Começaria Tudo Outra Vez”, de Gonzaguinha, compositor que teve Maria Bethânia como a grande intérprete de suas músicas. 

Essa composição é recheada de esperança e de coragem para recomeçar e seguir. Outro compositor que encontrou na artista uma das suas principais intérpretes foi Chico Buarque, que teve neste álbum duas músicas gravadas, uma delas a romântica “Terezinha” e a canção protesto “O Que Será (À Flor da Terra)”, essa em parceria com Milton Nascimento.

Promessa”, composta por Custódio Mesquita e Evaldo Ruy, é uma música que descreve a luta e a fé do povo nordestino, canção que ganha uma profundidade na voz de ave de rapina da artista. A canção de protesto “Gente”, escrita por Caetano, clama por felicidade à população brasileira, fazendo uma crítica direta à desigualdade social que era perceptível na sociedade brasileira no ano de lançamento do álbum, em 1977, e que infelizmente persiste até os dias de hoje. A música traz vários lemas, um deles: “Gente é pra brilhar! Não pra morrer de fome”. 

Bethânia, enquanto declama um texto de autoria própria, vai fazer uma homenagem à cantora Dalva de Oliveira, uma das suas principais inspirações no quesito interpretação, e cita durante seu texto a coragem da ilustre artista e emenda com a canção “Há um Deus”, em que afirma que sua dor é enorme, mas que existe um Deus e que este Deus irá ouvir sua voz. Saudando também sua fé, na faixa “Cabocla Jurema Por Causa Desta Cabocla”, ela vai reverenciar a Cabocla Jurema e Xangô (Orixá da Justiça e do fogo), entidades de religiões afro-brasileiras. A cabocla está associada à limpeza espiritual, enquanto o Orixá Xangô está associado à justiça. É como se a citação à Cabocla viesse para limpar e o Orixá viesse trazer justiça ao País, que na época ainda estava passando pela Ditadura Militar. 

Encerrando o álbum com muitas faíscas, a artista vai declamar Clarice Lispector que irá descrever em seu poema a situação de calamidade pública que o Brasil passava e que aparentemente ainda passa. Em seguida, Bethânia escancara sua luta neste álbum com a música de Chico Buarque e Milton Nascimento, “O Que Será (À Flor da Terra)”. A canção é um grito de liberdade e, na voz desta artista, irá firmar a luta de todos os brasileiros: “O que não tem censura nem nunca terá”. 

Bethânia é uma artista revolucionária. Apesar de ser injustamente vista como uma artista “isenta” por uma parcela de pessoas, a intérprete prova nesse e em outros álbuns de sua longa carreira que ela sempre foi uma cantora revolucionária, uma cantora muito à frente de seu tempo. Ainda que não seja entendida como uma artista tão revolucionária quanto os seus colegas tropicalistas, ela certamente é mais corajosa, e de certa forma sua revolução começa daí. Sua coragem de ser fiel a si mesma e a sua liberdade artística é tão revolucionária quanto a própria Tropicália. Bethânia, mesmo não fazendo parte deste manifesto, entoou diversos hinos dos seus tropi-amigos durante o período da manifestação tropicalista. A antropofagia de Bethânia se mostra assim, muito mais abrangente do que a do próprio movimento antropofágico, ao não se restringir ao movimento estético, ela passou a ser muito mais passível de experimentar e deglutir outras manifestações artísticas que os tropicalistas não experimentaram por precisar ser fiel ao seu movimento. 

Se não fez parte ativamente da Tropicália, foi por justamente entender que sua adesão ao movimento iria restringir suas possibilidades. Enquanto seus colegas levantavam uma única e ENORME bandeira em conjunto, Bethânia levantava sozinha sua própria bandeira, a da liberdade de escolhas. 

Ela vivia à margem de vários movimentos, mas nunca distante dos centros pensantes dos mesmos, sempre esteve atenta e sempre mostrou suas opiniões em seus álbuns e espetáculos, Pássaro da Manhã é a contestação disso. Bethânia é uma camaleoa, pode ser o pássaro proibido, o da manhã, a tigresa e o carcará. Em todas essas facetas ela vai entoar com sua voz a esperança de dias melhores, Bethânia é a sua própria bandeira, o seu próprio movimento revolucionário. Salve, Guerreira Guerrilha. Salve, Pássaro da Manhã.

Texto e Análise elaborada por: Rafael Lima Furst.