“60 anos. Palco, devoção, música, vitória e suor.”
No seu mais recente vídeo publicado, Maria Bethânia descreve nessas poucas — mas muito esclarecedoras — palavras os preparativos para a sua turnê comemorativa de 60 anos de carreira. Quem já conhece a história da abelha-rainha sabe que ela sempre comemora suas datas relativas à carreira. Pode parecer clichê dizer que é o público quem recebe o maior presente nessas comemorações, mas essa é a mais pura verdade.

Ora, na comemoração de 10 anos foi ideia de Bethânia se reunir com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, formando assim o mítico e lendário grupo Doces Bárbaros em 1976. Esse, que ficou marcado como um dos momentos mais icônicos da música e da cultura brasileira, seria apenas um dos tantos que a cantora proporcionaria ao público durante as décadas. Um dos pontos mais fora da curva foi o histórico concerto de 35 anos de carreira, que ficou conhecido como “Noite Luzidia”, gravado em 2001, no Canecão, com participações especiais de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Vanessa da Mata, Chico César, Ana Carolina, Carlos Lyra, Lenine, Branco Mello, Arnaldo Antunes e outros nomes célebres.
Esses dois casos, no entanto, têm um caráter muito particular, porque geralmente a cantora se apresenta sozinha em seus festejos. A seguir, vamos fazer um balanço retrospectivo dos 20, 25, 35, 40 e 50 anos de carreira, antes de tentar desvendar os 60.
Linha do tempo das comemorações:

Em 1985, Bethânia comemorou duas décadas de carreira com o show intitulado 20 Anos de Paixão. Segundo a cantora, em entrevista ao Jornal do Dia, edição de 12 de março de 1986, tanto este show quanto Nossos Momentos (de 1982) eram espetáculos retrospectivos. Entretanto, a diferença é que no de 1982 era um show dela com o público e no de 1985 teve “mais coisas suas: artistas e shows que mais a tocaram nos seus 20 anos de carreira.” Ou seja, um show mais focado nos desejos pessoais da artista. No repertório dos espetáculos, que contavam, segundo a imprensa, com até 50 canções, estavam clássicos como “Carcará”, “Rosa dos Ventos”, “Mãe Menininha”, “Tudo de Novo” e “Explode Coração”. Ainda assim, houve algumas surpresas, tais como “04 de Dezembro”, música de seu disco A Tua Presença de 1970, “Não Tem Tradução”, clássico samba de Noel Rosa, e “Jeito de Corpo”, música de Caetano Veloso. Também de seu irmão, talvez a maior das surpresas no repertório: “Podres Poderes”, rock’n’roll de protesto contra a falha da sociedade latino-americana, que encontrou maior força na voz de Bethânia.
Apenas cinco anos depois, em 1990, foi a vez de comemorar 25 anos de carreira. Baseada no disco de estúdio Maria Bethânia – 25 Anos, a turnê homônima tinha cerca de 37 músicas no repertório, que contava com algumas das mais conhecidas de Bethânia. “Drama”, “Tatuagem”, “Olhos nos Olhos”, “Não Identificado” e novamente “Explode Coração” estavam entre as interpretadas por ela nessa época. Diferente do show de 20 anos, em que a cantora preservou seus desejos, nesse ela declarou ao Tribuna da Imprensa, em 21 de março de 1991, que as apresentações eram “uma festa para o público”. Sobre sua postura no palco, a artista afirmou: “quem estará lá é a mesma Bethânia de sempre, só que mais madura.” Ou seja, um show mais dentro das normas e dos padrões da abelha-rainha, mas nem por isso menos memorável.
Avançando 10 anos, chegamos a Maricotinha, turnê oriunda do disco de mesmo nome, que comemorou os 35 anos de carreira da abelha-rainha. Entrecortado por diversos textos — marca geral de todos os shows comemorativos da cantora —, esse show foi mais inventivo quando comparado ao de 25 anos, embora mantivesse algumas das maiores obras de Bethânia no setlist. Não faltaram as atemporais “Negue”, “Rosa dos Ventos”, “Opinião”, “Anos Dourados”, “Festa”, “Fera Ferida” e “Explode Coração” — esta, por sua vez, presente em quase todas as turnês retrospectivas da cantora. Mas também houve momentos inovadores, como nas canções “Todo Amor que Houver Nessa Vida”, clássico de Cazuza e Frejat, e a primeira aparição em um show de “Sábado em Copacabana”, de Dorival Caymmi e Carlos Guinle, que posteriormente seria gravada em estúdio para a abertura da novela Paraíso Tropical, de 2007. Mas o momento mais antológico do show foi a mítica gravação de “O Quereres”, composição de Caetano Veloso que, a esta altura, já tinha ares de clássico e que, após a interpretação de Bethânia, cravou seu nome na lista de maiores canções da música popular brasileira. Vale lembrar que a gravação de Maricotinha Ao Vivo ocorreu em dezembro de 2001, meses após o já mencionado show Noite Luzidia.

Chegando aos 40 anos de carreira de uma das maiores cantoras do país, a comemoração tinha de ser à altura. Tempo, Tempo, Tempo, Tempo foi a turnê responsável por levar as quatro décadas de carreira de Bethânia para os palcos brasileiros em 2006. Nesse espetáculo, a cantora interpretou cerca de 40 músicas, retomando clássicos como “Reconvexo”, “Samba da Benção”, “Foguete”, “Gita”, “Carcará” (em pequena citação) e “O Que É, O Que É” — esta última encerrava o show. Outras músicas como “Santo Amaro”, “Gente Humilde” e “Foguete” faziam parte do repertório, que também contava com pequenas citações de músicas, como “Carcará”, “Você e Eu”, “O Mais-que-Perfeito”, entre outras. A maior surpresa foi a primeira gravação na voz da cantora de “Oração ao Tempo” — cujo refrão nomeou a turnê —, composição de seu irmão do ano de 1979, mais uma vez ressaltando uma música que já era clássica e colocando-a em outros patamares.
Dez anos depois, chegamos à mais recente das turnês concluídas de comemoração, Abraçar e Agradecer, que celebrou meio século da carreira de Maria Bethânia em 2015. O repertório do show, que posteriormente se tornou disco, dessa vez contava com mais de 30 canções — embora algumas tivessem citações de outras dentro delas, o que poderia somar mais de 40 músicas. “Gita”, “Rosa dos Ventos”, “Mãe Menininha”, “Dindi” e “Tatuagem” foram os lugares confortáveis em que Bethânia aportou nesse show. Um dos diferenciais foi o medley instrumental de “Até o Fim / O Quereres / Qui Nem Jiló / Pisa na Fulô”, em que a banda dominava o palco com sua exímia precisão rítmica ao interpretar composições históricas do cancioneiro nacional. Uma das surpresas foi a releitura da faixa “Abraçar e Agradecer”, que nomeou o show e que era originalmente do disco “A Força que Nunca Seca”, de 1999. Outro belo momento do show era a participação de Márcia Siqueira cantando por uns poucos segundos “Maracanandé”, um canto indígena tupi que abria alas para Bethânia cantar “Xavante”, composição de Chico César. Em resumo, um show mais convencional da artista, mas que conseguiu se fazer um belo retrato de sua magnitude, servindo também como memória de seus grandes momentos.

No geral, todos os shows comemorativos de Bethânia têm textos que entrelaçam as faixas. Neles, a cantora agradece a seus amigos, compositores, músicos, diretores e escritores que ajudaram na sua formação enquanto indivíduo — mas, principalmente, como cantora e artista cênica da música brasileira. Outra presença constante é a dos medleys, tanto cantados quanto instrumentais, que unem desde canções de um mesmo período ou trabalho até canções de diferentes pontos de vista ou escolhas musicais, mas que juntas podem funcionar muito bem — caso de “Silêncio” / “Carcará” no show Abraçar e Agradecer.
Expectativas para os 60 anos de carreira:
Diante de toda essa linha do tempo das comemorações de carreira de Maria Bethânia, podemos imaginar alguns pontos em comum que podem — e devem — aparecer nos próximos shows. Segundo a revista Veja, a turnê de 60 anos de carreira, cuja direção vai unir música e dramaturgia, será inspirada nos shows Rosa dos Ventos (1971) e Cena Muda (1974). Ambos, embora com repertórios e propostas ligeiramente diferentes, têm semelhanças, especialmente por possuírem um aspecto progressivo, sombrio e ao mesmo tempo muito impactante e poderoso na interpretação das canções.

Nesses dois shows aparecem os elementos listados anteriormente: medleys cantados ou instrumentais de diversas canções — no álbum que registra “Cena Muda”, 13 das 16 faixas são medleys —, clássicos já conhecidos na voz da cantora e interpretações de canções anteriormente conhecidas nas vozes de outras artistas, mas que, na voz de Bethânia, viraram históricas e ainda mais impactantes, como é o caso de “Não Identificado” em Rosa dos Ventos e “Sinal Fechado” em Cena Muda. Os múltiplos textos poéticos também são figurinhas carimbadas em ambos os shows e talvez sejam o ponto mais certeiro na hora das previsões para a próxima turnê.
O que esperar de novo de uma cantora que já fez tanto de inovador em suas comemorações? Se tratando de Maria Bethânia, pode-se esperar tudo, com a certeza de que a devoção, a música, a vitória e o suor jamais abandonarão a maior intérprete viva do país.
TEXTO: Gustavo Henrique Coelho © direto autoral, proibida reprodução sem autorização.
Revisão: Francisco Taboza.
Imagens extraídas do blog CaetanoEnDetalle.