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DISCURSO DE POSSE MARIA BETHÂNIA – Academia de Letras da bahia (2023)

“Minha mãe me deu ao mundo 

De maneira singular

Me dizendo uma sentença

Pra eu sempre pedir licença

Mas nunca deixar de entrar…”

Entro nesta centenária Academia de Letras da Bahia pelo trabalho que faço com a música e com a literatura – com a palavra. Assim, o meu agradecimento, em primeiro lugar, é para os autores, poetas e escritores de um modo geral. A vocês. 

Meu agradecimento especial ao senhor Presidente, Ordep José Trindade Serra; ao senhor Vice-Presidente, Marcus Vinicius Rodrigues, à senhora Primeira-Secretária, Heloisa Prazeres e à senhora Segunda Secretária, Lia Robatto. Agradeço ainda aos senhores Diretores da Biblioteca, do Arquivo, bem como aos demais senhores Diretores e Conselheiros.

Se hoje sou acolhida nesta casa, devo isso, em primeiro lugar, à indicação do meu nome por um grupo de acadêmicos que teve à frente o professor da Universidade Federal da Bahia, e compositor, Paulo Costa Lima. A todos eles, a minha gratidão.

Meu agradecimento vai ainda para as autoridades presentes.

Mas, de modo muito particular, quero assinalar minha gratidão a meus familiares.

Por fim, a todos que aqui estão, agradeço a partilha neste dia de festa.

A cadeira 18, que agora tenho a honra e a alegria de ocupar, conta muitas histórias. São histórias fortes, de guerreiros. A vastidão biográfica de meus antecessores ocuparia páginas e páginas, pesquisa e ânimo historiográfico. Tamanho empreendimento não cabe nesta hora. E, sobretudo, tal esforço não caberia a uma ocupante que chega aqui pelos caminhos da música popular e não da universidade ou dos meios intelectuais. Porém, a fim de cumprir com deferência e satisfação as regras deste ritual de posse, dividirei com os senhores os traços biográficos que mais me cativaram na vida e na obra de meus antecessores.

O Patrono da cadeira 18 é Zacarias de Góes e Vasconcelos, que veio à luz no litoral baiano, em Valença. De família tradicional e bem estabelecida, fez seus estudos no liceu da cidade de Salvador. Diplomou-se em leis pela Faculdade de Direito de Olinda em 1837 e três anos depois passou a fazer parte de seu corpo docente, sendo considerado por todos um professor brilhante. Em 1844, o Diretor da instituição, Dom Tomás de Noronha, referiu-se a Góes e Vasconcelos com as seguintes palavras: “Moço só na idade e no gosto natural de brilhar, pelo seu abalizado talento, pela clareza e facilidade da sua expressão (certo, prova da sua inteligência), pela dignidade das suas maneiras e comportamento, pelos seus princípios excelentes”. Seu talento acabou por levá-lo à política, chegando ele a governar, como presidente, as províncias do Paraná, do Piauí e de Sergipe. 

A vida pública de Zacarias de Góes e Vasconcelos foi extensa e marcada por muitos acontecimentos importantes. Cabe aqui destacar, no entanto, que, como político, era visto como severo, e que seus contemporâneos lhe distinguiam, sobretudo, como indivíduo de inteligência superior, de honra imaculada e rigidez de princípios incomum. Penso que tais qualidades emprestam à cadeira 18 um brilho singular: seu Patrono foi um defensor da melhor administração dos bens coletivos num país onde os homens públicos – nos tempos do Império como nos dias de hoje – não raro abandonam facilmente o sentimento de dever que deles espera a sociedade.

O Fundador da cadeira 18 foi um baiano de Salvador: o célebre José Joaquim Seabra. Professor, político, jurista, participou do processo de promulgação das duas primeiras constituições republicanas (a de 1891 e a de 1934) e governou a Bahia por dois períodos, de 1912 a 1916, e de 1920 a 1924. Sua posse no primeiro mandato foi marcada pelo traumático Bombardeio de Salvador em 10 de janeiro de 1912, ato extremo que buscou evitar o plano de transferência da capital da Bahia para Jequié e o adiamento das eleições. 

A cadeira 18 foi ocupada, a seguir, por Augusto Alexandre Machado. Professor de história da civilização no ginásio da Bahia, seu trabalho docente alcançaria êxito formidável na cadeira de economia e finanças na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Foi um intelectual ouvido e respeitado em todo o país, mas sua importância não impedia que seus contemporâneos o tratassem afetivamente por “Machadinho”. Foi, de certo modo, pelo que contam, um homem “do palco”. Porque era como palco que tratava a sala de aula. Tinha fama de grande orador, e a todos impactava com sua eloquência rebuscada, inspirada em Rui Barbosa. 

O terceiro titular da cadeira 18, foi Dom Avelar Brandão Vilela. Alagoano de Viçosa, estudou nos seminários de Maceió e Aracaju e ordenou-se padre em 1935. Secretariou a Diocese de Aracaju, fundou a Ação Católica em Sergipe e, em 1946, foi indicado pelo Papa Pio XII para bispo de Petrolina, no interior de Pernambuco. Dez anos depois, nomeado arcebispo metropolitano de Teresina, transferiu-se para o Piauí. No governo João Goulart, ficou conhecido no interior do Estado por pregar a reforma agrária e defender o Plano de Educação de Base. Em 1964, foi eleito vice-presidente do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), um dos mais importantes organismos da Igreja Católica na América Latina. Foi um dos mais ativos padres da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, onde ocupou a vice-presidência em 1971. Um ponto alto de sua carreira ocorreu em 1968, quando dirigiu a Assembleia-Geral do Conselho Episcopal Latino-Americano, em Medellín, Colômbia. Instalada pelo próprio Papa Paulo VI, a reunião produziu vasta documentação, que repercutiu mundialmente e levantou intensos debates acerca da abertura da Igreja para opções sociais e políticas consideradas ousadas. Dom Avelar, no entanto, manteve-se equidistante dos polos de radicalização, dentro e fora da Igreja, ainda que nos debates de Medellín tenha defendido a participação da Igreja na luta em favor dos povos subdesenvolvidos, pois ao mesmo tempo, condenava ações violentas ou extremistas. 

No dia 30 de maio de 1971, Dom Avelar assumiu o cargo de Arcebispo da Bahia. Na cerimônia de posse, pediu que fosse entoado oHino ao Senhor do Bonfim, obra composta em 1923 por João Antônio Wanderley e pelo poeta Arthur de Salles, que foi membro desta casa, onde ocupou a cadeira número 3:

Glória a Ti neste dia de glória,

Glória a Ti, Redentor, que há cem anos

Nossos pais conduziste à vitória

Pelos mares e campos baianos.

Desta sagrada colina,

Mansão da misericórdia,

Dá-nos a graça divina

Da justiça e da concórdia.

O ocupante imediato da cadeira 18, meu antecessor, foi o professor Waldir Freitas Oliveira. Soteropolitano que fez seus estudos primários em casa e cursou o ginásio no Instituto Baiano de Ensino, e o curso colegial,no Curso Clássico do então chamado Colégio da Bahia (hoje Colégio Central da Bahia). Graduou-se pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, em 1950 e, cinco anos depois, obteve ali os graus de Bacharel e Licenciado em Geografia e História, pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Em junho de 1959, licenciou-se em Geografia Humana e Econômica pela Faculdade de Letras da Universidade de Estrasburgo, na França. Após trabalhar na rede estadual de ensino, passou a integrar o corpo docente na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA em 1956. Na Universidade, exerceu o cargo de Diretor, de 1961 a 1972, do Centro de Estudos Afro-Orientais, do qual foi um dos seus fundadores, ao lado do Prof. Agostinho da Silva, em 1959. Em 1972, foi transferido para a Faculdade de Filosofia, onde ensinou até a sua aposentadoria. Além de dar aulas em diversos colégios de Salvador e na Universidade Católica, Waldir Freitas de Oliveira exerceu o jornalismo, como colaborador, em A Tarde e no Jornal da Bahia. Foi eleito para esta Academia no dia 28 de junho de 1987, passando a ocupar a cadeira número 18. 

O Centro de Estudos Afro-Orientais foi o mais ativo centro de formação de africanistas no Brasil: montou uma biblioteca especializada,promoveu cursos de extensão sobre a história, a geografia, a sociologia e a economia da África e criou intercâmbio de pesquisadores entre o Brasil e países africanos. Entre as atividades que desenvolveu, destaca-se a criação, em 1965, da revista Afro-Ásia.

A fundação de um centro dedicado a estudos africanos na Bahia veio ao encontro de um antigo desejo de compreender a origem africana nas expressões da cultura baiana, principalmente na religiosidade. Entre seus pesquisadores, estavam nomes fundamentais, como o próprio professor Waldir Freitas Oliveira, os professores Vivaldo da Costa Lima e Guilherme de Sousa Castro, naquela época jovens investigadores com diferentes formações acadêmicas. Entre eles, destaco Yeda Pessoa de Castro, não apenas por ser membro desta casa, na qual ocupa a cadeira 11, mas pelo meu privilégio de ter com ela um convívio amigável e uma proximidade familiar. Assim, pude desfrutar de sua sabedoria e ouvir suas histórias encantadas sobre a África, onde viveu e se doutorou em Línguas Africanas.

Sem que eu tenha conhecido o professor Waldir Freitas Oliveira, estivemos próximos, na medida em que fomos contemporâneos do magnífico quadro cultural que teve como centro irradiador a Universidade Federal da Bahia na administração do Reitor Edgar Santos.

Venho a esta casa com a esperança de dar continuidade a essa tradição de guerreiros. Mas, como todos sabem, venho de outras paragens. 

A canção popular no Brasil sempre teve uma força e uma penetração incomuns. Eu sou uma cantora brasileira e sei como a música pode atingir o povo brasileiro em todas as áreas. Encontrei, no meu caminho, mestres de teatro que entenderam que a minha expressão mais completa pedia que a literatura estivesse em par com a música. Fui criada numa casa onde poesia e música eram naturais como respirar. Meu pai gostava de poesia e seus amigos mais próximos eram poetas santamarenses. Minha mãe trazia de sua infância, vivida em casarões de usinas de cana-de-açúcar, o drama e o canto. Cresci ouvindo trechos de áreas de Norma na linda voz de minha mãe e as marchinhas de Carnaval de Carmen Miranda. Como caçula, pude ouvir distraidamente todos os grandes compositores, cantores e cantoras doBrasil daquela época, Caetano, meu irmão acima de mim, me traduzia o que ele ouvia e as minhas próprias escolhas. Caetano sempre foi meu guia e mestre de meu barco.

Foram essenciais na minha formação a escola de teatro de Martim Gonçalves; a Escola de Dança com as aulas e apresentações da professora Lia Robatto – que nesta casa ocupa a cadeira número 15, bem como a presença marcante de Maria Laís Salgado Goes, aluna de Yanka Rudzka, bailarina e coreógrafa polonesa que fundou a Escola de dança de Salvador; o inovador João Augusto, do Teatro dos Novos, com autores e ritos brasileiros; a Bahia reinventada nas palavras de Jorge Amado e Zélia Gattai, que aqui ocuparam a cadeira de número 21; os traços de Carybé; a geometria viva de Mário Cravo; a música deslumbrante e eterna de Dorival Caymmi, mestre de todos nós; dona Lina Bardi e sua arquitetura; Glauber Rocha e seu cinema revolucionário; o samba-de-roda de Santo Amaro; o candomblé de caboclo de Santo Amaro e Dona Edith do Prato; a força e a doçura de minha amada e saudosa Mãe Menininha do Gantois. Enfim, tudo o que li, tudo o que vi, tudo o que vivi.

Acima de tudo isso, minha devoção a Nossa Senhora da Purificação, desde menina; e, mais tarde, a Santa Bárbara, quando descobri que no sincretismo é o meu orixá, Yansã.

Fui feita na Bahia

Num terreiro de Oxum

Os tambores sagrados bateram pra mim

Me banhei com guiné, alfazema e dandá

Defumei com quarô, benjoim

E de pano da costa batizei no Bonfim

Um velho preto alaketo me disse

Que foi lá de Keto que eu vim…

Que eu já vim predestinada pra cantar assim…

Natural de Santo Amaro da Purificação, foi lá que fiz o curso primário, no Convento de Nossa Senhora dos Humildes, até fazer a admissão para o ginásio. Em 1960, vim para Salvador com meu irmão, Caetano, para estudarmos no Colégio Severino Vieira. Vim sem meu pai e minha mãe. E eu simplesmente não entendia o motivo de eu estar longe deles. Foi um afastamento muito difícil para mim. Quem passou a substituí-los, de certo modo, foi nossa irmã Nicinha, enviada por meu pai para cuidar de nós. Dois Irmãos já moravam aqui, Roberto e Rodrigo. Eu acordava às 6 horas da manhã, tomava café, vestia minha farda e chegava pontualmente, às 7 horas. Mas, por volta das 10 horas, já estava na rua. Ia com minhas amigas para a cidade baixa comer ostras ou ir ao cinema na matinal, mas, principalmente, para espiar, pelas grades, as aulas deconcentração ou de esgrima nos jardins da Escola de Teatro da Bahia. Eu me sentia estranha na escola, ainda que gostasse das pessoas, dos professores, e eles gostassem muito de mim. Nas provas de matemática, eu tirava zero, devolvia as provas assim que as recebia. Dizia: não adianta, não sei nada. Mas gostava de geografia, história, ciências, geometria e, claro, português. Só que entendia tudo rápido e não queria permanecer ali, sentada, presa, não via sentido naquilo. 

Ainda de Santo Amaro, onde cheguei a fazer o primeiro ano ginasial, trago boas recordações das aulas de história com o professor Édio Souza,assim como tenho excelentes lembranças do professor Nestor de Oliveira, que nos ensinava a ler poemas, a estudar os temas, as métricas, as rimas.

Mas minha primeira aproximação com a poesia aconteceu em casa. Meu pai era amante dos versos e tinha amigos poetas que frequentavam nossa casa, entre eles os próprios professores Édio e Nestor. Lembro-me bem de meu pai recitando pelos corredores os poemas que sabia de cor. Um de seus preferidos era o soneto “Lúcia”, de autoria de Arthur de Salles, o mesmo que compôs os versos do “Hino ao Glorioso Nosso Senhor do Bonfim”:

Lúcia chegou, quando do inverno o tredo

Vento agitava o coqueiral vetusto.

Vinha ofegante, e pálida de susto,

E trêmula de medo…

Ah! quanto beijo e quanto riso ledo

Deu-me o seu lábio, rúbido e venusto!

Quanto divino sentimento augusto,

Quanto infantil segredo!

Lúcia partiu… E aquele riso doce

Lúcia levou! A casa transformou-se

Num sepulcral degredo.

Se o vento agita o coqueiral vetusto,

Inda a recordo: pálida de susto

E trêmula de medo…

Às vezes, o professor Nestor pedia que eu lesse poemas na classe. Eu gostava de ler. Subia no praticável, no qual os professores davam aula, e não me intimidava. Ao contrário, muito cedo, fui atraída pelo palco. Havia um forte ambiente musical em minha casa, mas eu queria ser atriz. As cantoras e os cantores estavam mais ligados ao rádio, ao disco, e eu queria o palco. Podia ser no circo, outra grande paixão minha. 

Todo mundo vai ao circo

Menos eu, menos eu

Como pagar ingresso

Se eu não tenho nada

Fico de fora escutando a gargalhada

Versos de nosso grande Batatinha, compositor que confiou à minha voz suas magníficas composições. O palco, prazeroso e fascinante, ainda que modesto, esteve muito presente em minha infância. Parte considerável do espírito gregário do ambiente familiar se desenvolvia em nossa casa nos palcos que improvisávamos. Para melhor descrever o quadro, tomo as palavras de minha irmã, a poeta Mabel, que também foi minha professora, ainda em Santo Amaro: Nós brincávamos de drama no quintal. Se chovia o palco passava a ser a escada do corredor.

Rodrigo dirigia as cenas. Mãe Canô dava lençóis para a cortina, meu Pai ajeitava o arame. O cenário era o araçazeiro ou os degraus, dependia do tempo. Cantos, danças, monólogos diálogos… de tudo apresentávamos um pouco. Bob falava alto e era secesso representando o Doutor. 

“– Dá licença, Senhorita?

Pode entrar senhor Doutor.

Hoje a tarde está bonita…

Seu chapéu, faça o favor…”

Caetano tocava com os copos com água. Uns mais cheios que outros e o som controlado por ele nos encantava. Bethânia tocava bongô, outras vezes cantava “Feiticeira como a rosa, tão formosa…”

Cada um no seu papel, todos artistas principais aos olhos da plateia, formada por meu Pai, minha mãe, minha Daia, minha Dete, minha Inha, minha Teco (Teresa)…

Mudam-se os tempos. Mas algumas vontades permanecem.

Fui para o Rio de Janeiro em 1965 para estrear Opinião, substituindo Nara Leão. A mão que acolheu na cidade foi a de Thereza Aragão. Grande conhecedora de música popular, produtora, militante política, foi uma das fundadoras do Teatro Opinião em 1964. Apaixonada por Proust, personagem exuberante, generosa, acolhedora, e, para mim, a perfeita tradução da palavra amizade. Casada com o poeta Ferreira Gullar, era uma linda carioca da gema, que me apresentou à intelectualidade local – escritores, autores, diretores, atores. Entre eles, Vinicius de Moraes, de quem fiquei próxima já em nosso primeiro encontro. Ele foi uma espécie de pai para mim, um orientador delicado e sábio. E logo quis conhecer sua poesia.

De tudo, ao meu amor serei atento

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento

Vinicius foi me dando sugestões, orientações, me educandomusicalmente, e disse que eu deveria assistir a Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos, com Fauzi Arap. Foi o que fiz. E quando vi Fauzi no palco entendi o que era ser ator, o que era representar. Compreendi o teatro e seu fundamento. Desse modo, eu o quis, imediatamente, como mestre e amigo. E, de fato, ficamos muito próximos. Ele me ensinou tudo. Depois da temporada com Opinião, quando quis fazer um espetáculo meu, eu o convidei para a direção. E ele aceitou meu convite.

Nasceu desse modo Comigo me desavim, um espetáculo de música realmente teatral, com direção de Fauzi Arap, que estreou no dia 11 de outubro de 1967, uma quarta-feira, no Teatro Brigite Blair, em Copacabana, onde ficou em cartaz por muito tempo. A banda era formada por Rosinha de Valença e pelo Terra Trio. O título veio de um poema de Sá de Miranda, poeta português do século XVI. Eu não me lembro bem de como conheci o texto, mas creio que foi João Augusto, o brilhante diretor do Teatro dos Novos, quem me mostrou aqueles versos de Sá de Miranda, porque ele me apresentava muita coisa de jazz, teatro e poesia. Mas recordo perfeitamente do quanto fiquei apaixonada pelo poema e de eu ter pedido a Caetano que o musicasse, pois eu queria cantar aqueles versos. E ele atendeu ao meu pedido. Do mesmo modo, lembro de quando, tempos depois, cantei para Fauzi o poema musicado e ele disse: você vai cantar no show, que vai se chamar Comigo me desavim. Foi o que aconteceu. 

Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo.
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.
Com dor de todos, fugia,
Meu coração que padece
Agora já fugiria de mim

Se de mim pudesse.
Qual deverá ser fim

Da triste vida que eu sigo 
Pois que trago a mim comigo
Grande inimigo de mim.

Foi em Comigo me desavim que li pela primeira vez num palco um texto de Clarice Lispector. Fauzi era muito próximo dela, e uma das primeiras coisas que ele sugeriu para o espetáculo foi a leitura de Mineirinho, crônica que Clarice tinha publicado poucos anos antes, em 1962, na revista Senhor. O texto trata da morte de um criminoso que a polícia do rio de Janeiro executou com treze tiros:

(…) a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Li aqui apenas um trecho do início do texto; mas, em Comigo me desavim, a pedido de Fauzi, li na íntegra o longo e belo texto de Clarice, e esse momento se tornou o mais impactante do show.

Não pretendo desfiar aqui toda a minha carreira, os discos, os espetáculos, nem teria como nomear todos aqueles que colaboraram comigo ao logo dos anos e a quem devo tanto. Parece incontornável, no entanto, falar de um espetáculo de 1971, que marcou de modo decisivo minha vida no palco e definiu mais claramente a aliança que venho fazendo entre a música e a literatura: Rosa dos ventos – show encantado. Tudo o que, alguns anos antes, em Comigo me desavim, havia definido meu modo de cantar e de me apresentar – a dramaturgia, o trabalho e a intuição, a música e a poesia, a palavra e o gesto – chegou ali a seu ponto mais concentrado, mais experimental, mais libertador. Roteiro, cenário, arranjos – tudo se tornou realmente mágico. Não devo me alongar e nem posso traduzir em palavras o que significou Rosa dos ventos em minha carreira e em minha vida. Foi um espetáculo marcante também para outros artistas, pois definiu um modo novo de aliar ao canto a dramaticidade e o texto falado. Mas, nos termos desta cerimônia de posse, quero assinalar apenas que ali esteve presente de modo muito especial, mais uma vez, Clarice Lispector, e o que ali se consagrou minha proximidade com a obra de Fernando Pessoa.

Mestre, meu mestre querido

A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,

Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,

Natural como um dia mostrando tudo,

Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.

Meu coração não aprendeu nada.

Meu coração não é nada,

Meu coração está perdido.

Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,

Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?

Porque é que me chamaste para o alto dos montes

Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?

Meu amor pela obra de Fernando Pessoa – e a declaração pública desse amor – dura já algumas décadas. Para maior glória de minha alegria, essa permanente admiração foi além da leitura em discos e espetáculos musicais. Em 2013, tive a honra de dividir com a professora Cleonice Berardinelli, grande especialista na obra pessoana, uma mesa na FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty. No ano seguinte, essa celebração da obra de Fernando Pessoa foi filmada em estúdio, com uma pequena plateia, por Marcos Debellian. O filme, que ganhou o nome de O vento lá fora, registra os ensaios para a leitura, conversas entre mim e Dona Cleo e a nossa apresentação para o público que nos assistia – nós, duas mulheres, duas brasileiras, uma professora e uma cantora, histórias e vidas diversas, partilhando um mesmo entusiasmo, um mesmo espanto.

Nesta vida, em que sou meu sono,

Não sou meu dono,

Quem sou é quem me ignoro e vive

Através desta névoa que sou eu

Todas as vidas que eu outrora tive,

Numa só vida.

Mar sou; baixo marulho ao alto rujo,

Mas minha cor vem do meu alto céu,

E só me encontro quando de mim fujo.

Muito antes, em 2009, já havia convocado Fernando Pessoa para que se unisse a outros criadores da língua portuguesa – como Jorge de Lima, Patativa do Assaré, Manuel Bandeira, José Craveirinha, Euclides da Cunha, Carlos Drummond de Andrade, Waly Salomão, Castro Alves e outros –  no espetáculo Bethânia e as palavras, dentro do projeto “Sentimentos do Mundo”, criado pela Universidade Federal de Minas Gerais. A mesma UFMG publicou, em 2015, um belíssimo livro – Caderno de poesias – que reúne os poemas de minha leitura, ao qual se soma um DVD com o vídeo do espetáculo.

Se o dia de hoje não é apenas um sonho, devo muito, repito, a Fauzi Arap, mas também a outros nomes que me mantiveram firme no palco, que me compreenderam e compreenderam que a música não me bastava, que eu precisava de um complemento para me expressar, para dizer o meu pensamento, ou melhor, o meu modo de ser mais completo. Seria preciso lembrar meus outros mestres no teatro: Alvinho Guimarães, Isabel Câmara, Augusto Boal, Ferreira Gullar, Flávio Império, Bibi Ferreira, Bia Lessa; mas também os autores que me tocam, me comovem, brasileiros como Castro Alves, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, nordestinos de modo geral; mas também de outros Brasis, como Mário de Andrade, Paulo Leminski e Mário Quintana, ou portugueses, como José Régio, António ramos Rosa, Eugénio e Andrade Sophia de Mello BreynerAndresen. 

Também seria preciso reverenciar todos os poetas da canção, que me traduziram e que eu traduzi no meu canto. A lista praticamente não teria fim, mas começaria com Caetano Veloso e Chico Buarque. E sendo uma lista impraticável, não faço senão usar os nomes desses dois poetas como modo de saudar o compositor popular.

Numa festa imodesta como esta

Vamos homenagear

Todo aquele que nos empresta sua festa 

Construindo coisas pra se cantar

E como se trata de uma festa “imodesta”, não posso deixar de registrar outras homenagens que muito me lisonjearam e me deram alegrias que ecoam no dia de hoje: em 2016, a Estação Primeira de Mangueira desfilou no carnaval do Rio de Janeiro com o enredo “Maria Bethânia, a menina dos olhos de Oyá”, com o qual se sagrou campeã. No mesmo ano, a Universidade Federal da Bahia, na figura de seu reitor, o professor João Carlos Salles, que nesta Casa ocupa a Cadeira 32, concedeu a mim o Título de Doutor Honoris Causa, alegando minha contribuição para a música e a literatura brasileiras. Segundo a UFBA, a outorga do título foi proposta, inicialmente, pela Faculdade de Arquitetura e das Escolas de Belas Artes, Teatro, Dança e Música da universidade que completava, naquele ano, 70 anos, a mesma idade da homenageada.

O ano de 2016 foi realmente especial. No dia 9 outubro desembarquei em Maputo, Moçambique, para uma apresentação ao vivo, na qual li textos em poesia e prosa, e recebi dois grandes escritores: Mia Couto, moçambicano, e José Eduardo Agualusa, angolano. Desse encontro emocionante resultou um documentário que trata da minha relação com escritores de nossa vasta língua portuguesa. O filme ganhou o título Karingana – licença para contar, e foi realizado em parceria com a CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Há belas participações de escritores e escritoras como Paulina Chiziane, Calane da Silva, Gilberto Matusse, Lourenço do Rosário e Nataniel Ngomane, além de imagens da gente bonita de Moçambique, com suas falas, danças, cantos, vestimentas, sorrisos – um jeito recôncavo de ser e de estar.

Foi também em 2016 que meu trabalho com a literatura foi em direção a um público maior, com o programa de televisão “Poesia e prosa”. Composto por oito episódios, contando com a colaboração de convidados ilustres, o programa se voltou para a vida e a obra de Clarice Lispector, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Castro Alves Ariano Suassuna, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes e WalySalomão. 

Mas o que me toca de modo muito especial é poder ver o quanto meu trabalho com música e literatura pode ir além dos espetáculos e discos, indo alcançar as salas de aula, sobretudo as do ensino público. É, semdúvida, algo que eu não poderia prever. A surpresa confirma, no entanto, certos rumos de minha carreira, nos quais se confundem a arte e a cidadania, sem dogmas, sem ideologia – apenas a verdade e um senso ético que deve estar na base de todo gesto criador.

Um belo exemplo é o Projeto Brasileirinho, desenvolvido desde 2006 na Zona Oeste da Cidade do Rio de Janeiro, no Colégio Estadual Vicente Jannuzzi. É uma iniciativa da professora de História Vânia Corrêa Pinto, que se propõe a criar relações entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a vivência diária na escola. O trabalho tem como base o repertório do álbum Brasileirinho. A inovação é o uso da música como estratégia e ferramenta para chegar a vivências que despertem sentimentos opostos à violência, ao descaso à competição e ao preconceito.  Trata-se, como diz a professora Vânia, de “reaprender” valores através da música. Para isso, os alunos estudam o repertório, analisam as letras, debatem em sala, pesquisam sobre os temas das canções, escrevem poemas, pensam atividades variadas, e tudo culmina num espetáculo inteiramente montado por eles e apresentado para toda a escola. Sou madrinha entusiasmada do projeto desde o início. Estive com os alunos em vários momentos. Muitos foram conhecer o trabalho realizado na gravadora, assistiram a shows, e, em 2020, participaram da exposição Maria de Todos Nós, no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, que comemorou meus 50 anos de carreira. A professora Vânia já esteve mais de uma vez na UFBA para fazer palestras sobre o Projeto.

Desde o primeiro semestre de 2017, a Escola Estadual Ministro Jarbas Passarinho, localizada em Camaragibe, em Pernambuco, realiza o projeto “Dra. Maricotinha – poesia da teoria à prática”, iniciativa que trata a poesia como intervenção social e a literatura como acesso à cidadania. O projeto não nasceu como um grande plano educacional elaborado em gabinetes. Foi, ao contrário, criado em sala de aula por uma professora, Ana Cláudia Xavier, e seus alunos. 

O projeto, que envolve estudantes dos ensinos fundamental e médio, é inspirado em meus trabalhos com música e poesia. São tratados em aula aspectos de forma e conteúdo dos textos, bem como a interpretação na fala e no canto. O sucesso da iniciativa fez com que outras escolas, incluindo as redes municipal e privada, passassem a utilizar o projeto. 

Além disso, Dra. Maricotinha ganhou vários prêmios, como o “Educador Nota 10”, em 2017. Também foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) e tem sido apresentado em encontros educacionais dentro e fora do Brasil. Segundo a professora Ana Cláudia Xavier, a poesia estava esquecida dentro das salas de aula e as bibliotecas precisavam ser ocupadas.  Foi então que surgiu a ideia de levar os estudantes para dentro das bibliotecas e mostrar a eles o poder da poesia e da literatura através de uma cantora popular. 

“Dra. Maricotinha – poesia da teoria à prática” é uma ação inovadora, transformadora, que considero um dos mais belos e importantes trabalhosjá realizado com minha obra.

Outra iniciativa que me enche de satisfação também vem de Camaragibe. Lá, na Escola Municipal XV de Novembro, a professora Audaci Maria trabalha com educação infantil, primeira etapa do ensino básico, voltada para crianças de até cinco anos de idade. É o momento em que se desenvolvem atividades lúdicas como forma de promover o aprendizado e o desenvolvimento cognitivo, motor, social, emocional e físico. Em 2015, a professora Audaci Maria criou o Projeto Bethânia Fulozinha, que culminou num jornalzinho chamado Isso é onça!, feito pela turma do 4° ano da Educação Infantil, que divulga a cada bimestre as invenções, brincadeiras, desenhos e falas das crianças, bem como o contatodelas com diferentes linguagens. O nome do jornal faz referência à canção “Moda da onça”, tema popular adaptado por Paulo Vanzolini. Eu sempre entendi que havia algo infantil nessa moda caipira. Um Brasil criança. 

A nossa poesia é uma só

Eu não vejo razão pra separar

Todo o conhecimento que está cá

Foi trazido dentro de um só mocó

E ao chegar aqui abriram o nó

E foi como se ela saísse do ovo

A poesia recebeu sangue novo

Elementos deveras salutares

Os nomes dos poetas populares

Deveriam estar na boca do povo.

Os livros que vieram pra cá

O Lunário e a Missão Abreviada

A donzela Teodora e a fábula

Obrigaram o sertão a estudar

De repente começaram a rimar

A criar um sistema todo novo

O diabo deixou de ser um estorvo

E o boi ocupou outros lugares

Os nomes dos poetas populares

Deveriam estar na boca do povo.

No contexto de uma sala de aula

Não estarem esses nomes me dá pena

A escola devia ensinar

Pro aluno não me achar um bobo

Sem saber que os nomes que eu louvo

São vates de muitas qualidades.

O aluno devia bater palma

Saber de cada um o nome todo

Se sentir satisfeito e orgulhoso

E falar deles para os de menor idade

Os nomes dos poetas populares.

Mas não posso – nem quero – falar de poetas populares sem deixar assinalado o nome de Violeta Arraes. Foi ela, minha grande amiga, que me deu a conhecer a poesia do sertão. Viola, como eu a chamava, era uma escola. Com ela, eu e qualquer um que ela acolhesse – e não eram poucos – entrávamos em contato com os mais altos ensinamentos. Escola da vida e do viver, voltada para os problemas éticos, políticos e estéticos da realidade brasileira. Escola que ensinava a largar a estreiteza provinciana ao mesmo tempo em que orientava na direção de um aprofundamento das identidades regionais. Cariri e Paris. Viola: cidadã brasileira, alma do tamanho do mundo, poesia do sertão.

Esta nobre casa, construída por homens e mulheres dedicados à literatura, ao conhecimento, ao ensino, decidiu me acolher na cadeira 18, alegando que sou “uma defensora das letras”. Aceito, com um misto de humildade e altivez, o qualificativo. Porque, sim, em toda a minha longa vida de trabalho, tentei – e ainda tento – defender do meu púlpito, que é o palco, a literatura, a poesia escrita e cantada, a palavra em todas as suas dimensões.

Não há como expressar de modo satisfatório minha emoção e minha gratidão no dia de hoje, ao tomar assento nesta casa tão ilustre. Gostaria de falar longamente da Bahia, do Recôncavo, de Santo Amaro da Purificação, do Rio de Janeiro, onde vivo desde 1965, de todo o Nordeste, do Brasil, enfim. Seria preciso citar um número sem fim de pessoas, registrar ainda que de passagem uma série infinita de fatos que vêm à memória num momento como esse, quando uma espécie de retrospectiva parece se impor como uma música que surge na memória. Mas quando há muito a dizer, sempre nos toma a sensação de que se disse muito pouco e que o essencial é algo do qual nos aproximamos sem tocá-lo de verdade. 

Hoje é um dia especial: esta casa está recebendo, em primeiro lugar, uma mulher; está reconhecendo os poderosos laços entre música e literatura; está dignificando um trabalho que não se dá nos livros ou nasuniversidades, mas nos palcos, nos discos, no rádio, sem pouso, sem repouso, numa bela e mágica corda bamba, como se a menina de Santo Amaro, tivesse, enfim, realizado seu sonho: ser trapezista. 

Poderia resumir tudo o que disse e tudo o que deixei de dizer reafirmando meu júbilo por estar nesta casa: na Academia de Letras da Bahia. Para mim, a importância de tamanha honraria é exatamente esta: ser uma distinção da terra onde eu nasci, como se eu estivesse sendo recebida em festa pelo lugar de onde, na verdade, nunca saí.

A Bahia, Estação Primeira do Brasil!

Maria Bethânia, Abril/ 2023.